sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Verdi - Requiem: Toscanini


O país se despede do filósofo Carlos Nelson Coutinho

20/9/2012 14:56,  Por Redação - do Rio de Janeiro

 

Carlos Nelson impactou o conjunto da esquerda em seu célebre artigo publicado em 1979 na Revista Civilização Brasileira

Morreu nesta quinta-feira o filósofo marxista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Nelson Coutinho. Uma das principais referências em Gramsci no Brasil, Carlos Nelson impactou o conjunto da esquerda em seu célebre artigo publicado em 1979 na Revista Civilização Brasileira: A democracia como valor universal. O escritor era filiado ao PSOL desde sua fundação. Segundo comunicado da direção da Escola de Serviço Social da UFRJ, o velório foi realizado no Atrium do Fórum de Ciência e Cultura.

Entre as muitas mensagens de despedida do pensador marxista, a Editora Boitempo fez publicar, em sua página, a mensagem: “Morreu o grande intelectual marxista Carlos Nelson Coutinho, depois de meses combatendo um câncer dos mais violentos. Carlito, como era chamado pelos amigos, descobriu a doença em fevereiro deste ano, quando nos comentou por e-mail: “Ainda estou perplexo, mas disposto a brigar. Também sobre isso, tenho tentado me valer do mote de Gramsci: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Torçam por mim”. Foi o que fizemos esses meses todos.

No próximo sábado, 22 de setembro de 2012, a Boitempo prestará uma homenagem a ele no encerramento do III Curso Livre Marx-Engels, após a aula proferida por Michael Löwy (entrada liberada para quem não acompanhou o Curso até agora,  a aula e a homenagem serão transmitidas ao vivo pelo Ustream). Até um mês atrás, Carlito, com a coragem dos grandes, ainda cogitava estar presente para receber a homenagem. Fará uma falta enorme. Presente!

A direção da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, também em sua página eletrônica, deixou nota de pesar pelo falecimento do Professor Emérito Carlos Nelson Coutinho:

- É com profunda tristeza que comunicamos o falecimento na manhã de hoje do nosso querido professor emérito Carlos Nelson Coutinho, reconhecido dentro e fora do país como um dos mais influentes pensadores brasileiros do final do século XX e princípio do XXI. Sua atitude de vanguarda, ao introduzir, na cultura brasileira, o pensamento de dois clássicos do debate teórico filosófico europeu do século XX, G. Lukács e A. Gramsci, e a elaboração de uma obra, que tem o selo claro de uma intervenção política na defesa do socialismo e na renovação do marxismo, o revelam como um dos melhores produtos do que ele mesmo denominou a “década longa dos anos 60”, conjuntura que, aberta em 1956, no XX Congresso do PC da URSS e terminada em meado dos anos 70, favoreceu  em meio às agitações de estudantes e trabalhadores em 1968, o terceiro-mundismo, o eurocomunismo, a Primavera de Praga  os melhores anos de florescimento do marxismo.

- Docentes, técnico-administrativos e alunos da ESS da UFRJ tiveram a honra e a sorte de conviver com o brilhantismo, a generosidade e o bom humor de Carlos Nelson. Em nossa Unidade de Ensino, desde o ano de 1986, nosso querido Carlito se constituiu como uma das principais lideranças teórico-acadêmicas no processo de renovação do nosso Programa de Pós-Graduação em Serviço Social a refundação do Projeto de Mestrado em fins da década de 1980 e a criação do Curso de Doutorado em 1994 o que sagrou a ESS da UFRJ, na esteira da renovação da profissão no Brasil, um dos pilares dos avanços profissionais e acadêmicos da área no país.

- Em reconhecimento à contribuição desse grande intelectual e amigo que possibilitou a nossa Escola alçar-se a condição de agência nacional e internacional de formação de docentes e pesquisadores da área, o Conselho Diretor da ESS da UFRJ decreta a partir de hoje três dias de luto. Estarão, portanto, suspensas todas as atividades acadêmicas entre 20 e 23 de setembro do corrente, permanecendo a Unidade fechada neste período.

“Conselho Diretor da ESS da UFRJ, em 20/09/12″

Carlos Nelson Coutinho, um dos intelectuais marxistas mais respeitados do Brasil, recebeu nasceu na Bahia, em uma cidade do interior chamada Itabuna, mas foi para Salvador ainda pequeno, “com uns 3 ou 4 anos”, lembrou o intelectual, em uma entrevista ao jornalista Hamilton Octávio de Souza, editor da revista Caros Amigos. Coutinho se formou em Salvador, “e as opções que eu fiz, fiz em Salvador”, assinala.

– Eu nasci em 1943, glorioso ano da batalha de Stalingrado. Me formei em filosofia na Universidade Federal da Bahia, um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais do que a maioria dos professores. Meus pais eram baianos também. Meu pai era advogado e foi deputado estadual durante três legislaturas da UDN. Publicamente ele não era de esquerda, mas dentro de casa ele tinha uma posição mais aberta. Eu me tomei comunista lendo o Manifesto Comunista que o meu pai tinha na biblioteca. Ele era um homem culto, tinha livros de poesia. Minha irmã, que é mais velha, disse que eu precisava ler o Manifesto Comunista. Foi um deslumbramento. Eu devia ter uns 13 ou 14 anos. Aí fiz faculdade de Direito por dois anos porque era a faculdade onde se fazia política, e eu estava interessado em fazer política. Me dei conta que uma maneira boa de fazer política era me tomando intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista Brasileiro, que naquela época tinha presença. O primeiro ano da faculdade foi até interessante porque tinha teoria geral do Estado, economia política, mas quando entrou o negócio de direito penal, direito civil, ai eu vi que não era a minha e fui fazer filosofia – concluiu o professor.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Sandra d Sá & Bethânia: Salve s folhas


Serejo: Pequena história de um livro

Por: Vicente Serejo

Um livro, Senhor Redator, não precisa ser raro nem caro para ser desejado. Mesmo em terras de uma aldeia assim como esta, derramada entre um rio, um mar e uns morros. Sei por experiência toda minha, pessoal e íntima. Nunca desejei nada que estivesse fora do alcance das mãos, mas nunca proibi os olhos de vê-los e admirá-los. Livros há aqui, alguns milhares, nestas salas, se devo ser sincero. Cada um com sua pequena história. Mas, em nenhum deles, deixo segredos que não possam ser revelados.

De alma parnasiana e incapaz de entender os mestres e doutores do saber universitário, um dia descobri que a única vocação era ser leitor dos velhos críticos impressionistas. Faz um bom tempo, mais de três décadas. E entre eles, uma paixão já à época proibida pelas patrulhas das vanguardas modernas com suas intolerâncias contra a tradição: Agripino Grieco. Lia quase escondido. Sem nem ao menos dizer seu nome ou citar seus livros. Eram inúteis como leitura e imprestáveis como fruição literária.

O sonho, sem nenhum valor de venda ou de troca, era tê-lo completo na estante. E fui juntando aqui e ali, nas pequenas e esparsas viagens que fazia a Recife, o lugar possível para minhas aventuras de juntador de livros velhos. Saia à meia noite, num ônibus-leito, para ganhar tempo e amanhecer a sexta-feira na estação rodoviária do Recife que naquele tempo era perto dos armazéns do porto antigo. Um café, lá mesmo, e já ia andando. A cidade acordava com o cheiro dos abacaxis no mercado São José.

O destino era fácil. Caminhava até a ponte Buarque de Macedo, aquela antiga, de ferro, que se estira de um lado a outro, atravessava e seguia em linha reta até a Praça Maciel Pinheiro. Ali onde deságua como afluente do Capibaribe a velha Rua da Matriz, esquina com o quarteirão do sobradinho onde morou Clarice Lispector na sua chegada ao Brasil. Cedo, os sinos ainda tocavam, e da nave da matriz rescendia o cheiro do incenso que vinha do altar na elevação do Santíssimo, perfumando a rua.

É ali, ali mesmo, quase esquina com a praça, que fica a Livraria Brandão com aquele aviso na placa de acrílico ao lado da pira grega do saber, como uma marca: ‘Livros usados, raros e esgotados’.

Eurico Brandão ainda morava no Recife, não tinha a filial de São Paulo, onde depois foi viver. Era com ele o torneio dos preços. Dominava catálogos mais clássicos – Brasiliana, Documentos Brasileiros – as edições raras do Recife, de Gilberto Freyre ao raríssimo Folclore Pernambucano de Pereira da Costa.

E tinha uma vantagem: não fechava na hora do almoço. Era matar a fome ali por perto e voltar para a luta. Os olhos deslizando nos dorsos dos volumes, os dedos puxando um ou outro num garimpo lento e prazeroso. Qualquer dúvida maior de vencer era só deixar a decisão para o sábado pela manhã. E logo depois fazer o trottoir da Rua da Roda, ali no centro. Os sebistas numa pequena praça circular. Era lá o pequeno-grande reinado de Melquisedec, livreiro experiente e abusado, contador de vantagens.

Foi numa viagem a Recife que descobri ser verdadeira a lenda contada por Rubens Borba de Morais, o grande bibliófilo brasileiro de que os livros esperam pelas mãos que os procuram. Um dia, em São Paulo, encontrei as obras completas de Agripino Grieco em edições originais, encadernadas em couro de porco, alguns volumes autografados. Encadernações de época, douração a fogo, todos menos um que desapareceu antes de chegar ao livreiro ou o dono anterior nunca conseguiu ter: ‘Anphoras’.

Os livros de Agripino estavam esquecidos, sem procura, daí os preços comuns. E se ali não existia o ‘Anphoras’, assim mesmo, com ph, paciência. Quando aparecesse, ficaria diferente dos outros, mas colecionar livros usados tem dessas coisas. O ‘Anphoras’, Senhor Redator, tem uma singularidade que não se pode esquecer: é um livro de poesia, sua estréia em fevereiro de 1913, edição da Tipografia G. Moares & C. Naquele mesmo ano que publicaria ‘Estátuas Mutiladas’, numa gráfica portuguesa.

Tudo indica, Senhor Redator, que o pequeno ‘Anphoras’, de noites estivais e elegíacas, acabou renegado pelo crítico culto, áspero e exigente que depois seria Agripino Grieco. Um olhar temido que escreveu dois livros contra Machado de Assis. Há quem suspeite que Agripino destruía cada exemplar de ‘Anphoras’ que encontrava. Pode ser. É livro singelo, pequeno, com pouco mais de 170 páginas, uma brochura de capa cartonada e vermelha, e ornatos gráficos encimando algumas páginas internas. E só.

Um dia, caçando livros naquele salão da Livraria Brandão, estreito e comprido, vi um exemplar de ‘Anphoras’ encadernado em couro vermelho, dorso e cantoneiras, papel marmorado, capas originais preservadas e autografado para Carlos de Laet. Na folha de rosto, em letras pretas e graúdas, está escrito assim: ‘Ao eminente homem de letras Dr. Carlos de Laet, homenageando seu alto espírito, offereço estas “Anphoras”. Rio, 18 de fevereiro de 1913, Agripino Grieco’. Aquele ‘Anphoras’ esperava por mim.

 

O escritor que vem do frio

Por Homero Fonseca (www.interblogs.com.br/homerofonseca/)

 In: Blogue de Roberto Almeida

Garanhuns tem vida literária para além do Festival de Inverno


Garanhuns é uma festa. Não me refiro especificamente ao FIG – o famoso Festival de Inverno, com sua feérica programação anual de shows com nomes consagrados da música popular. Pois o festival não é apenas isso. Tem artistas locais e boa música regional. Além de uma versão do Festival Virtuosi, do maestro Rafael Garcia e da pianista Ana Lúcia Altino. Tem oficinas. Tem teatro. E o que é melhor: tem literatura, essa prima pobre das artes atuais.


Sob a competente batuta do poeta Wellington de Melo, gerente de literatura da Fundarpe, o festival abre espaço para as letras. Em muito menor escala, é verdade. Mas abre espaço. Também os cachês de escritores e poetas, em comparação com os cantores de rádio famosos, é assim... ó! São distorções, que já expus cara a cara a Wellington. Claro que as leis do mercado ditam as regras. Mas o poder público existe para por rédeas neste sim que é o verdadeiro Moloch. Wellington tem feito a parte dele. Cabe nós, operários das letras, reivindicar mais respeito profissional. Mas eis que enveredei por um desvio.

Voltando à senda, no festival a literatura tem espaço. Em oficinas, palestras, mesas-redondas, feirinha de livros, Espaço da Palavra. Tem até poesia a delivery! Explico: a ação inusitada que é um grupo de poetas ficar à disposição do público, sendo acionado, por telefone, para ir às casas dos leitores, fazer recitais. E as histórias que eles e elas contam são lindas: famílias inteiras escutando com atenção, oferecendo cafezinho, interagindo, e, foi não foi, algum(a) poeta doméstico(a) se revelando no encontro. Maravilha!


O Sesc, que tem atuado nacionalmente com vigor na área literária, também promove encontros simultâneos, como o de que participei com o escritor e cineasta Wilson Freire, com mediação do jornalista Hugo Viana, sobre cinema e literatura.


O mais interessante é que, antes e depois da badalação do FIG, Garanhuns , sempre linda, sempre limpa, tem vida literária! Uma Academia de Letras, presidida pelo poeta João Marques. Uma pequena editora bem organizada, que começa a produzir livros de ficção e poesia de qualidade (de conteúdo e gráfica), a u-Carbureto. Escritores ativos, como os contistas Nivaldo Tenório e Antônio Aristóteles, poetas como, entre outros, o vigoroso Helder Heric. Discussões o ano inteiro, movidas por gente como a jovem professora Karina Calado e Marcilene Silva.


Enfim, Garanhuns é uma festa o ano inteiro.


Eu, que tenho uma relação afetiva com a cidade – ali servi o 71º Batalhão de Infantaria e concluí o curso clássico no Colégio Diocesano, em que a professora-sacerdotisa Luzinette Laporte pegou uma redação minha feita em classe e, de surpresa, publicou no jornal O Monitor – tenho grande prazer em reencontrar vez por outra essa turma amiga, da qual faz parte ainda a professora Dorvalina Vasconcelos, em cuja escola há um Ponto de Leitura Homero Fonseca – olha eu pintando para a posteridade!, – e jornalistas do quilate de Jodeval Duarte, Manuel Neto e Roberto Almeida.

Deixei por fim um registro importante. Nessa última visita, em julho passado, fui apresentado ao escritor Mário Rodrigues. Um cara de seus trinta e poucos anos, menção honrosa na edição nacional do Prêmio Sesc de Literatura 2010 com a coletânea de contos O Vendedor de Seriguelas. Ele me entregou um romance publicado ano passado pela referida u-Carbureto, A Curva Secreta da Linha Reta. Grata surpresa. Me deparo com um escritor no pleno domínio da escrita. O tema: um homem acerta contas consigo mesmo e com a vida. Está escrito nas orelhas do livro: “Artista plástico famoso, está acostumado a enfrentar reviravoltas. Antes, ignorante, pobre e desprezado pelas mulheres. Agora, culto, rico e endeusado por elas.” Tem cinco namoradas simultaneamente e acha que ama a todas igualmente. Mas a morte trágica de uma delas muda tudo. E ele parte para uma vingança. O final guarda uma estonteante surpresa para o leitor.

Grosso modo, essa temática umbilical não me sensibiliza. Mas essa busca de redenção por um personagem cínico transcorre num ambiente onde estão presentes os desmantelos e impasses do tempo presente, dos homens presentes, a vida em vertigem, a alma cativante das ruas, como diria João do Rio.

A estrutura narrativa repousa sobre uma carpintaria muito bem manejada. Idas e vindas no tempo. Deslocamentos no espaço. Somente o primeiro e o último encontro com as mulheres são narrados. Cabe ao leitor preencher as lacunas. Tudo isso com uma linguagem trabalhada, usando de forma surpreendente a norma culta e expressões populares, muitas vezes no mesmo parágrafo. Se num ou noutro trecho essa combinação soa esquisita, no conjunto o efeito é instigante, espantando para bem longe esse intruso coxo no texto literário que é o lugar comum e dando-lhe um frescor pouco encontrado hoje em dia. Se o elo entre a vida anterior do personagem (pobre anônimo) e seu estatus atual (artista famoso) é abrupto, quase um solavanco, e por isso um pouco inverossímel, isso não danifica a engenhosa arquitetura da narrativa. O resultado final é um dos melhores romances que li nos últimos anos. Pena que não tenha ainda sido descoberto para além dos horizontes floridos da Garanhuns de clima frio e povo acolhedor. Não tenho dúvida de que, se o deus da literatura é justo, Mário Rodrigues será descoberto.

Para vocês degustarem, vai um trecho do romance:


“Anoitecia devagar. Às vezes a vida tem desses prodígios, torna-se lerda. Um segundo tem a eternidade embutida nele. Quem já foi traído e flagrou o adultério – infinitos porquês forrozando entre as frontes latejantes –, quem já deixou escapar um título no campeonato de futebol em virtude de um pênalti infeliz – bambos joelhos esfolados amassando gramas indiferentes -, quem já perdeu um filho, e chorou diante do caixão aberto, ou lacrado – unhas piradas riscando o verniz da madeira insolente –, este sabe muito bem da lentidão temporal a que me refiro.”


Pra quem se interessar, o endereço da Editora u-Carbureto é: Rua Abílio Camilo Valença, 22 – Apartamento 02 – Garanhuns, PE – 55290 – 000.

 

Solução agroambiental

Xico Graziano

Quando o deputado federal Ronaldo Caiado, por fim, abrandou o discurso e aceitou, naquela quarta-feira 29 de agosto, votar favoravelmente ao relatório da Comissão Especial, levantou-se a senadora Kátia Abreu, presidente da poderosa Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), e lhe beijou a face. O carinhoso gesto, aplaudido de pé, simbolizava o recuo dos ruralistas radicais, permitindo o acordo de votação sobre o Código Florestal. Rara unanimidade.

No dia seguinte a Folha de S.Paulo estampava: Governo faz concessões a ruralistas. O Estado de S. Paulo também destacava: Novo Código Florestal beneficia ruralistas. Curiosamente, as manchetes invertiam a realidade dos fatos. Interessante. Nessa discussão da lei ambiental, as notícias sempre tenderam a desfavorecer o campo. Por que será?

O assunto básico da Medida Provisória 571 recai sobre as chamadas áreas de preservação permanente (APPs), especialmente aquelas situadas nas margens dos rios. Qual a divergência básica entre ruralistas e ambientalistas? Estes propõem regredir a produção nesses locais, obrigando os agricultores a recuperá-los com vegetação nativa, numa distância mínima de 30 metros ao longo dos cursos d'água. Os ruralistas, ao contrário, querem manter os terrenos já ocupados historicamente, consolidando neles a agropecuária.

No acordo de votação, definiu-se a querela: na situação mais comum, de propriedades médias, em rios estreitos a faixa obrigatória de recuperação ambiental será de 15 metros. Nem zero, nem 30 metros, exatamente a metade. Para aceitar o trato os ambientalistas exigiram que os rios intermitentes também participassem da regra ecológica. Os ruralistas, contrariados, tiveram de ceder.

Vários outros detalhes da legislação florestal, agora definida, comprovam ter funcionado o mote anterior. Buscou-se uma composição capaz de assegurar equilíbrio entre as posições da produção agropecuária e da preservação ambiental. Nem lá, nem cá. A concertação política realizada expressa uma decisão típica, em matérias complexas, dos regimes democráticos maduros. Nem vencidos, nem vencedores. Bom para a sociedade.

No Brasil, porém, as coisas se passam de forma um pouco diferente. Certo preconceito da sociedade urbana, exacerbado recentemente pelo discurso agressivo dos ecologistas, leva os formadores de opinião a tomar posição, invariavelmente, contra os produtores rurais. Estes são os "do mal"; os ambientalistas, "do bem". Triste concepção.

No polarizado debate sobre o Código Florestal, os ruralistas jamais defenderam a possibilidade, muito menos a facilidade, de realizar novos desmatamentos nas matas ciliares. O bicho pegou no suposto "passivo ambiental" da agricultura. Esse conceito, moderno, se refere àquelas áreas que deveriam ter sido mantidas com vegetação nativa, mas acabaram sendo incorporadas à agricultura. Parte desses locais - situados nas encostas montanhosas, nas beiradas de rios e lagoas, no topo dos morros - serve hoje à produção rural, lavouras e pastagens. Ademais, eles recebem residências e instalações, geram trabalho e riqueza.

Os ruralistas queriam a regularização dessa ocupação histórica, livrando-se da conta de um passivo que, a bem da verdade, se existir, pertence a toda a sociedade. Afinal, foi exatamente a expansão agrícola do passado que permitiu o desenvolvimento apreciado no presente. Vale o mesmo para a "reserva legal" das propriedades rurais.

Segundo o Código Florestal, além das áreas de preservação permanente, um porcentual da fazenda, variável conforme a região e o bioma, deveria ser excluído da exploração agropecuária. Por aqui, no Sul e no Sudeste do País, esse pedaço de preservação é de 20%. Por várias razões, porém, a lei nunca foi devidamente cumprida. Pois bem, agora o acordo obriga os produtores rurais a compensarem a supressão florestal realizada anteriormente.

Não será tarefa fácil. Fórmulas alternativas procuram torná-la viável. O agricultor, por exemplo, pode recompor suas próprias matas; pode, ainda, adquirir florestas noutros locais, mantendo-as intactas, compensando as que não tem na sua fazenda. Todos precisam regularizar, ambientalmente, sua propriedade. Mas, perceba, nenhum ruralista defendeu a extinção das reservas legais, nem quis facilitar a derrubada de florestas virgens. Nada disso. O problema fundamental residia em como regularizar o passado.

Na leitura da sociedade, entretanto, ficou a pecha de que os agricultores são "criminosos ambientais". Imperou o raciocínio simplista, estimulado por certo ambientalismo fundamentalista, de tipo messiânico, que agrada aos jornalistas especializados em vender notícias fortes, sensacionalistas. Os verdadeiros dilemas, que denomino agroambientais, cuja resolução significa um difícil acerto de contas entre o passado e o presente, sucumbiram no jogo da comunicação.

O pior, porém, estava por vir. Lendo os jornais daquele dia, a presidente Dilma Rousseff, assustada com o famigerado acordo com os ruralistas, repreendeu de pronto a sua equipe. Resultado: na semana seguinte, prestes a ser votado no plenário da Câmara dos Deputados, o acerto miou. O senador Jorge Viana, petista de carteirinha, engenheiro florestal, o principal fiador da articulação congressual nessa matéria do Legislativo federal, engoliu as suas palavras. Estaca zero.

O governo federal preferiu desmoralizar a boa política, que no fundo patrocinara, a vender à opinião pública uma imagem associada ao ruralismo. Daí surgiu a cena do bilhetinho de Dilma, rechaçando a solução de compromisso pelas regras da democracia. Sua atitude maltrata o campo, despreza o passado. Infeliz país que trata com desdém seus agricultores.

* AGRÔNOMO, FOI SECRETÁRIO DE AGRICULTURA E SECRETÁRIO DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO
E-MAIL: 
XICOGRAZIANO@TERRA.COM.BR

 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Cabaceiras, na Paraíba: a Roliúde Nordestina


Serejo: A alegoria do açude

Por: Vicente Serejo

O sertão de Oswaldo Lamartine, desde A Caça nos Sertões do Seridó, seu livro de estréia, em 1961, foi sempre erguido com a literariedade das coisas materiais e ao mesmo tempo alegóricas. Um território épico e lírico ao mesmo tempo, marcado pela dura realidade de um chão de espinhos e, ao mesmo tempo, forrado de flores. É como se a vivência do etnógrafo e as lembranças do menino se misturassem nos olhos do escritor, fazendo da narrativa a argamassa da invenção e da reinvenção.

E uma das narrativas mais exemplares dessa fusão que de um lado documenta e do outro liberta a imaginação é exatamente este ensaio que merece uma nova edição, agora autônoma, depois de ter sido parte integrante de ‘Sertões do Seridó’, a reunião dos olhares oswaldolamartianos, editados pelo Senado Federal com prefácio erudito e consagrador do professor Francisco das Chagas Pereira que faz, certamente, a primeira tomada de posse acadêmica e ao mesmo tempo literária da obra de Oswaldo.

Cuidadoso no esmero e na exatidão da síntese, Oswaldo nada esquece quando documenta. Sabe cumprir o belo aprendizado que reconheceu ter guardado de leituras e conversas com Câmara Cascudo ainda quando ‘espiava, espiava e não via’ o sertão monumental. E o homem feito no talhe do grande leitor descobre o outro sertão que ia além, muito além daquelas serras da infância. E é este sertão que ele ergue. Épico e lírico, entre pedras e páginas, silêncios e palavras, numa pastoral de reencontros.

Quem mergulha nas águas do seu açude, cristalinas de tão cheias de sol ou turvadas das chuvas nas invernadas do sertão, vai descobrir que o açude grande, de verdade, e o pequeno, invenção dos meninos, são feitos da mesma carga emocional. Não é à toa que ele vai buscar numa quadrinha popular de José Lucas de Barros a certidão, como um ferro de gado, para marcar o que precisa reservar como posse e domínio:

 Vendo d’água a terra cheia

 Eu sinto doce lembrança

 Do meu tempo de criança,

 Dos meus açudes de areia

Na porteira deste seu ensaio que agora o Sebo Vermelho reedita, Oswaldo teve o cuidado de demarcar o açude como um território dessa infância que reconstrói a cada livro e que nasce do seu olhar de sertanejo cósmico e universal. O seu açude não é apenas o lugar que os homens da civilização da seca inventaram, nas gargantas das serras ou nos baixios, para que as águas fossem prisioneiras da necessidade humana. É também, com as suas águas, um símbolo de vida, o lugar bíblico da criação.

Eis sua descrição na abertura do texto, antes dos aspectos históricos e técnicos, estabelecendo a estética de uma cartografia alegórica e, por isso mesmo, livre do apenas real.

‘Espia-se a água se derramando, líquida e horizontal, pela terra adentro a se perder de vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas e embastadas, onde touceiras de capim de planta ou o mandante de hastes arroxeadas debruçam-se na lodosa lama. O verde das vazantes emoldura o açude no cinzento dos chãos. Do silêncio dos descampados vem o marulhar das marolas que morrem nos rasos. Curimatãs em cardumes comem e vadeam nas águas beirinhas nas horas frias do quebrar da barra ou ao morrer do dia. Nuvens de marrecas caem dos céus. Pato verdadeiro, putrião e paturi grasnam em coral com o coaxar dos sapos que abraçados se multiplicam em infindáveis desovas geométricas. Gritos de socó martelam espaçadamente os silêncios. O mergulhão risca em rasante vôo o espelho líquido das águas. Garças em branco-noivo fazem alvura na lama. É o arremedo, naqueles mundos, do começo do mundo…’.

 Este é Oswaldo Lamartine.

 Épico e lírico. Real e irreal. Verdadeiro e alegórico.

 Vicente Serejo

sábado, 15 de setembro de 2012

Cátia de França


Serejo: Do bacharel ao bacharel

Por: Vicente Serejo

Como acredito em Michel Henry, para quem a barbárie não vem da rudeza intelectual, como seria comum pensar, vivo convencido de que a intolerância nasceu com os nobres e foi viver, para sempre, na cabeça das elites. Quanto mais fechadas, maiores os privilégios.

Umas blindadas por tendência natural; outras por estratégia, sempre unidas por uma espécie de contaminação corporativista inevitável. Ainda que quase todos eles tenham chegado pelo caminho do mérito, quando lá chegam, se tornam cúmplices.

Ao desembarcar aqui, a família real vinha tangida pelo medo de Napoleão invadir Portugal. Tanto temia perder o brilho do cetro e da coroa que fundou um arremedo de império, pois naturalmente trazia na bagagem, além de ouro e prata, os livros para a futura Biblioteca Nacional e os prelos a partir dos quais nasceria a Impressão Régia. E como idéias são idéias, e posto que é impossível prendê-las, logo nasceria aqui o sentimento de um pendor bacharelesco a cintilar no rubi dos anéis dos nossos bacharéis das leis.

E surgiriam os dois grandes centros formadores da mentalidade: um no Largo de São Francisco, em São Paulo; e outro em Recife. Duas escolas que modelariam o pensamento jurídico e social brasileiro, sem prejuízo da importância de outras usinas de diplomas. Nelas germinaram as idéias novas e as lutas contra a escravidão, a favor do ideal republicano e da liberdade de expressão. Nada foi mais importante na formação da identidade brasileira que o bacharelismo nos tribunais, nas ruas, nos jornais, na política.

Só na segunda metade do Século XX, principalmente no regime autoritário, nasceu a figura do tecnocrata. Filho da academia que passou também a ser formadora de economistas e administradores, foi o tipo ideal para servir aos poderosos desqualificados com sua linguagem cifrada, um código ordenador de idéias reunidas em torno de projetos técnicos, fechados num círculo de fogo. Só os tecnocratas sabiam fazê-los e só eles eram capazes de examiná-los e aprová-los para o Estado financiar as obras públicas.

Como não tínhamos – e não temos até hoje – carreiras funcionais nascidas da qualificação acima de dos critérios familiares e políticos, a força dominadora dos tecnocratas não suportou o peso do processo de redemocratização. Refestelados nos gabinetes poderosos e a eles servindo, nem notaram que o debate caminhava para a construção do estado democrático de direito e, nele, até inevitavelmente, os bacharéis estariam de volta ao poder, já que o saber da lei, bem ou mal, impõe domínios individuais e coletivos.

E veio corporativismo. Eis o veneno. Formou-se uma enorme casta com suas sub-castas, untadas por privilégios. Muitos, legalmente bem urdidos a partir do jogo político. Algumas vezes, no tráfico de influência. Lá estavam os bacharéis na Constituinte, atuando no Senado e na Câmara. Por vezes, fazendo as leis que operariam. A redemocratização é um processo de conquistas com o sol da opinião pública que a tudo ilumina. Por isso veio a Lei de Acesso à Informação. E flagrou o incômodo que espanta a todos.

 

Histórias mal-assombradas nos altos de Triunfo

por Homero Fonseca

www.interblogs.com.br/homerofonseca/

 
O infatigável (e além disso dono de uma mente sempre em ebulição) Wellington de Melo tem tirado leite de pedra à frente da diretoria de Literatura da Secretaria de Cultura (pronto: quebrei a cangalha mental pernambucana que impede elogiar gente viva).

Digo isso porque quase sem verbas – afinal a literatura é a prima pobre das artes – vem sacudindo poeira e tirando as teias de aranha em seu caminho, para criar ações como o 1º Festival Internacional de Poesia do Recife e o 1º CliSertão – Congresso de Leitura e Literatura do Sertão, em Petrolina, numa parceria com a UPE – Universidade de Pernambuco.


Mais recentemente o poeta aprontou mais uma: o Encontro de Literatura Fantástica em Triunfo, Sertão do Pajeú.


E o camarada teve o requinte de escolher a dedo a locação desse encontro: a Casa Grande das Almas, sede de antiga fazenda, nos altos da alta Triunfo, que o juiz aposentado Assis Timóteo de Lima, herdeiro (neto) do patriarca João Timóteo de Lima, mantém intacta, com suas paredes recobertas de fotos antigas e móveis e aparelhos incrivelmente conservados como um gramofone (que ainda toca baixinho) e um telefone daqueles de parede com manivela (conectado à linha telefônica, sim). Além das histórias de fantasmas que cercam a antiga propriedade, um cenário composto por simulacros de jazigos assinala o ossuário da família, nos fundos do vasto terreno, dando um aspecto lúgubre ao ambiente.

Convidado para participar de uma das mesas, piquei-me para Triunfo, ao lado de Iracema, Joca Souza Leão, Roberta Alcoforado e Jairo Lima.
O encontro rolou durante a tarde-noite do dia 27 de julho passado,
começando com uma abordagem teórica sobre literatura fantástica, pelos professores André de Sena, Rúbia Lóssio e Neilton Lima. Verdadeira aula.


Em seguida, conversa conduzida por mim com dois escritores ligados ao tema: o contista Haroudo Xavier e o jornalista Roberto Beltrão.

A noite já caía, quando fez-se intervalo para o jantar, retornando-se então para uma sessão de contação de histórias no cenário encantado, em que Roberto Beltrão contou algumas das histórias de um Recife assombrado colhidas por ele e o ator João Ricardo Oliveira interpretou um conto que escrevi especialmente para a ocasião. [João Ricardo no dia seguinte apresentaria pela primeira vez na rua a peça Roliúde, exatamente em frente ao recém-reinaugurado Cine Teatro Guarani, com grande receptividade do público.]

Se à tarde a plateia não fora tão numerosa, na hora do mal-assombro apareceu um monte de gente, inclusive crianças (lembro eu próprio quando menino me grudava com os irmãos ao pé do rádio para ouvir com grande volúpia A Hora do Além, arrepiados e tremendo de medo).

E aqui vai o conto interpretado pelo ator carioca:

O mistério da moça de branco


Homero Fonseca

A história que vou contar se passou aqui.

Exatamente aqui nessa Casa Grande das Almas, do finado alferes João Timóteo de Lima.

Todos daqui sabem que, por situar-se metade em território pernambucano e metade em solo paraibano, essa mansão serviu de refúgio ao próprio Lampião. Aqui ele se sentia seguro. Se chegavam as volantes paraibanas, ele ia para o lado pernambucano da casa; e vice-versa. Por isso, quando levou um tiro numa perna, num combate com os “macacos”, foi aqui que o Capitão Virgulino Ferreira se tratou e convalesceu.
Bem, essa é uma história sabida e consabida.

Mas o que venho contar hoje não é nenhuma gesta de cangaço.

É um caso de beleza e mistério acontecido ainda no finzinho do século 19, quando o alferes era vivo, assim como meu bisavô, Durval de Albuquerque Melo, à época no vigor dos seus vinte anos.

A crônica familiar, transmitida de geração a geração, conta que toda a família foi convidada para um grande baile promovido pelo velho Timóteo, em comemoração ao retorno de um de seus filhos, Arsênio, que acabara de se formar em Direito em Coimbra.

Durval conhecia o recém-formado bacharel, de quem chegara a ser companheiro de noitadas juvenis no Recife, antes da partida dele para Portugal. Foi, portanto, com alegria que veio para o memorável baile, sem saber que protagonizaria um acontecimento extraordinário, de repercussões trágicas em sua vida.

Este casarão refulgia com dezenas de lampiões de gás e candelabros com centenas de velas, num clarão perceptível muitas léguas ao redor. O cheiro dos jasmineiros em flor adoçava a noite tépida. O som das valsas e polcas executadas pela orquestra ouvia-se a grande distância.

Os convidados chegavam nos seus cavalos, em comitivas alegres e numerosas. Eram recebidos com muita fidalguia pelos donos da casa. À hora aprazada, quando todos já haviam comparecido, começou o baile. Havia fartura de comes-e-bebes e um ambiente jubiloso acolhia os convidados. Durval dirigiu-se ao salão principal e, depois de cumprimentar vários dos convivas e conversar algum tempo com o amigo Arsênio Timóteo, Durval centrou sua atenção nas moças. A mais fina flor das famílias sertanejas estava ali representada. Ele passeou os olhos pelo conjunto, fazendo um aceno com a cabeça para algumas conhecidas. Foi quando a viu resplandecente num vestido branco de organdi. Sem dúvida, era a mais bela da festa: sua tez de alfenim contrastava com os negros cabelos escorridos e a face delicada era ensombrecida por um olhar melancólico que em nada se fixava. Durval ficou paralisado de emoção diante da beleza da moça. Por um tempo imensurável, não despregou os olhos da bela desconhecida. Que estranhamente não conversava com ninguém e nem tinha sido tirada para dançar por qualquer rapaz..

Finalmente Durval tomou coragem e se dirigiu a ela, convidando-a a dançar. A moça olhou-o intensamente com seus olhos tristes e deixou-se conduzir levemente para o salão das danças. Rodopiaram o resto da noite formando um lindo par. Durval estava tão apaixonado que era como se não houvesse mais ninguém no baile, só ele e a dama de branco. Ele segurava com firmeza sua pequenina mão e seus olhos não se desgrudavam um só instante. Nem sequer falavam nada, só dançavam, sentindo o calor e o perfume um do outro.

Quando terminou o baile, já alta madrugada, Durval acompanhou a moça até essa varanda onde nós estamos e perguntou-lhe se podia acompanhá-la até sua casa. Ela apenas fez que sim com a cabeça e o rapaz rápido foi buscar seu cavalo na estrebaria, voltou montado, ergueu-a até a garupa do alazão e foram trotando em direção a Triunfo. Na noite escura, o clarão da Casa Grande foi ficando cada vez mais para trás. A moça enlaçava Durval delicadamente pela cintura e, no silêncio dominante, ele somente ouvia, arrebatado, o ecoar dos cascos do cavalo no chão de pedrinhas e a respiração compassada dela. Depois, ele diria que aquela tinha sido a noite mais bela e mais misteriosa de sua vida.

Já perto da cidade, nas imediações do cemitério, a moça pediu para apear. Durval estranhou o pedido, mas ficou esperando, montado. A bela dobrou a esquina e seguiu como quem ia em direção ao portão do cemitério, saindo de suas vistas. O rapaz então pensou na hipótese de que ela devia estar de brincadeira, para saber se ele era um cavaleiro realmente corajoso, e sorriu com esse pensamento. Ficou ali, sem ouvir nenhum ruído, a não ser, de vez em quando, o resfolegar inquieto do cavalo. Como ela demorasse um pouco, desmontou e puxando o animal pela rédea dobrou a esquina e aproximou-se do portão do campo santo. O portão estava trancado por ferrolhos e ele não ouvira qualquer barulho de passos ou ranger de dobradiças. Durval vasculhou as proximidades, sem resultado. Angustiado, pulou o muro do cemitério e percorreu as trilhas entre as cruzes e as poucas catacumbas. Nem sinal da donzela.


Desolado, um solitário cavaleiro voltou para cá e não contou nada a ninguém.


No dia seguinte, sutilmente sondou um e outro, mas ninguém parece tê-la visto no baile, nem mesmo quando dançou um longo tempo com ele. No final da manhã, quando se preparava para voltar para a fazenda da família, resolveu se abrir com seu amigo Arsênio Timóteo.

Este, ao invés de desacreditar ou até mesmo ridicularizar o amigo por essa história tão bizarra, como Durval esperava, dirigiu-se até uma casinhola que havia nos fundos da herdade. Era ali que morava o preto Honorato, antigo escravo da família, tido na conta de pessoa sábia e muito afeita ao mundo dos espíritos. Na realidade, Arsênio, em menino, ouvira Honorato relatar algo acerca de uma dama de branco.


Com o coração aos pulos, Durval acompanhou o amigo e ouviu o preto velho narrar que de vez em quando um rapaz encontrava essa dita moça num baile, dançavam, namoravam, e quando ele ia levá-la em casa ela desaparecia em frente ao cemitério. Explicou que era a alma de uma donzela que tinha morrido há mais de 50 anos, de desgosto por ter sido abandonada pelo noivo na porta da igreja. Parece que ela voltava nos bailes pra ver se reencontrava o noivo fugitivo.

Imaginem o susto e a tristeza do rapaz enamorado ao escutar tal história.

Mas o caso não termina aqui.

Passaram-se anos, ele foi morar no Recife, estabeleceu-se no comércio, conheceu minha bisavó, casaram.


Um dia, já se passavam mais de 20 anos daquela noite misteriosa, minha bisavó encontrou nas coisas do marido um anel de prata, com um pequenino brilhante, com a inscrição no lado interno: A.M.O.R. – XX-V-MDCCCXLVIII.


Ciumenta, pressionou Durval a se explicar sobre a joia, farejando alguma traição conjugal. Ele ficou tão surpreso com o achado quanto a esposa e sua perplexidade foi tão sincera que a convenceu da sua inocência.

Mas Durval ficou com aquilo martelando na cabeça: como diabos aquele anel havia ido parar nas suas coisas? Uma noite, não aguentando o peso da interrogação, pegou a joia e pôs-se a fumar na varanda de casa, tentando resolver a charada, levantando as hipóteses possíveis para o seu aparecimento entre seus pertences. Ficou rodando o pequenino objeto entre seus dedos, quando teve o estalo: uma joia assim tão delicada somente poderia caber num dedo igualmente delicado. E as mãos mais delicadas que ele jamais tinha tocado eram... as da moça de branco daquele baile tão distante no tempo! Então ele lembrou que, ao apear do cavalo, amparada por suas mãos firmes, a moça deixara escapar o anel por dentre seus dedos. Durval o segurou e, enquanto aguardava que ela voltasse, guardou-o na algibeira. Depois do desenlace assombroso do episódio, já em casa, na fazenda do pai, jogou-o numa caixinha onde costumava colocar pequenos objetos. Como ele esqueceu esse detalhe tão impressionante, ninguém soube dizer. Mas o fato é que, talvez chocado com a transformação da amada num fantasma, ele tenha apagado muitos detalhes da memória.


Entretanto, intrigado com as inscrições, procurou um amigo, dono da Joalharia Krause, que a herdara do avô, e que poderia dizer-lhe algo sobre o inusitado achado. Levou-lhe o anel, contou a história, e Guilherme – era o nome do amigo – segurando-o com uma mão e coçando a cabeça com a outra, depois de uma razoavelmente longa hesitação, pareceu lembrar-se de algo.

– Meu caro Durval – disse ele, por fim – lembro de ouvir uma história do meu pai, que a ouviu do pai dele, sobre uma moça abandonada à porta da igreja, lá para as bandas do Sertão, em meados do século passado. Foi um caso muito célebre, que muita gente acompanhou pelo noticiário da imprensa. Meu avô parece que ficou muito impressionado. Vamos ver...

Correu para uma velha escrivaninha, onde abriu com uma chave um escaninho, de lá retirando vários papeis. Ficou a folheá-los, até que gritou: “Eureca! Aqui está notícia!” E estendeu a Durval um recorte amarelado de jornal, uma edição do Diario de Pernambuco, 15 de maio de 1849. Lá estava a notícia de que uma jovem de boa família sertaneja, Amália Maria de Oliveira Ramos, havia se suicidado no dia 5 do mesmo mês, por haver sido abandonada pelo amado, com quem noivara , exatamente há um ano atrás. Honorato falara em morte por desgosto, mas tal pormenor não tinha qualquer importância diante do impacto do relato jornalístico.


Estarrecido, Durval leu e releu a nota várias vezes, pálido como um defunto.

Guilherme, sem perceber o estado de choque dele, vibrava com a elucidação do mistério. Tudo se encaixava: as iniciais do nome da moça e a data do noivado. Mostrava-se muito espantado com o fato de o anel aparecer nas mãos do amigo, mas dele não obteve qualquer explicação. Até porque o próprio Durval não conseguia atinar com o fato de, sendo a bela moça um espectro, um ser imaterial, como podia portar uma peça feita de prata e brilhante.

Meu bisavô saiu da joalharia transtornado, rodando sem parar o pequeno objeto entre seus grossos dedos, e tão imerso estava em seus tempestuosos pensamentos, que não ouviu o ranger inútil dos freios do bonde sobre os trilhos.

 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Roliúde, de Homero Fonsêca


Homero Fonsêca: Literatura Fantástica

Homero Fonsêca:

no: www.interblogs.com.br/homerofonseca/ 

No Encontro de Literatura Fantástica, em Triunfo, conheci um jovem escritor, Haroudo Xavier, ao mediar a mesa de que ele participou ao lado do jornalista Roberto Beltrão.

Haroudão é fissurado por literatura fantástica e também por RPG (Role Playing Game ou "Jogo de Interpretação de Papéis", espécie de narrativa interativa reunindo vários jogadores que criam personagens num ambiente virtual, sob a direção de um “mestre” que define os rumos da história).

Segundo suas próprias palavras:

“Profissionalmente, já trabalhou com um pouco de tudo. De atendente de locadora a dono de empresa (Radar 9, de Webdesign).

Nos últimos anos tem se envolvido apenas com artes gráficas e tradução.
Faz o curso de Letras (Licenciatura em Inglês pela UFPE), mas já é seu terceiro curso universitário (não chegou a concluir História na UNICAP e Jornalismo na UFPE).
É sobretudo um contista. Tem um blogue (http://devoras.blogspot.com.br/) onde tenta (ou tentou) a proeza de escrever um conto por dia. Para se exercitar e pelo prazer de escrever.

Os contos no blog podem ser classificados em várias das vertentes do fantástico, da ficção científica ao horror e algo de fantasia, em alguns casos, na linha do fantástico todoroviano. Atualmente está envolvido com a publicação de uma coletânea de Contos Fantásticos pela UBE (que segue a linha todoroviana para definição do fantástico).
Fez uma das versões do design do Recife Assombrado (de Roberto Beltrão), além da capa da primeira edição da coletânea de contos de autores que contribuíram com o site.”


Retomo a palavra: se a memória não me prega uma peça, Haroudo dispôs-se a esse prodigioso esforço de escrever um conto por dia após o fim de um relacionamento. [Se não foi assim, passa a ser, pois é mais dramático, conforme Nelson Rodrigues com certeza sentenciaria.]
Mas o que quero dizer é o seguinte: pincei um dos seus contos e li-o durante nosso bate-papo. E, não tenho dúvida, de que se trata de um texto que, por sua alta qualidade, paira acima de gêneros. Não é literatura fantástica, nem horror, nem fantasia. É Literatura.

[Como o conto do Haroudo é melhor do que o meu, deixei propositalmente para publicá-lo depois.]


Apreciem.

Clarissa



Haroudo Xavier

Ela olhava para suas mãos com olhos arregalados.
O verde que brota, a esmeralda que a recobre, em folhas, cheirosas como orvalho.
Clarissa corre para o banheiro, gritando pela mãe enquanto se esfrega.
A mãe lhe socorre.
A menina tem seus braços vermelhos, em alguns pontos, quase sangram, esfregados que foram em desespero pleno, desenfreado medo.
Ela chora nos braços da mãe, que se banha em lágrimas, nas suas próprias, de ambas.
O medo da filha é enxurrada e banha seu coração que se aperta.
Vão ver o um médico a tarde.
Ele descarta qualquer problema. "Imaginação", ele diz, ao tom de diagnóstico.
No caminho de asfalto e fumaça, as mulheres voltam para o apartamento concreto.
Não há o que temer dentro da gaiola dourada de vidro e aço, de onde o mundo é formiga.
Mas a noite chega, o dia se apresenta, e Clarissa, de seus braços, folhas brotas.
São pequenas, mal as vê, mas vê e as sente.
Delicadas, verdes, cobrindo parte de seu braço.
Ela chora, mas se controla. Pensa na mãe, no médico.
Acorda a mãe e vão. O diagnóstico, muda. É um fungo. Um fungo "atípico", diz o médico.
Lhe passa remédios, lhe recomenda repouso. Um dos remédios, nisso, deve ajudar. Não diz o médico, mas a menina lê, na troca de olhares entre os adultos.
Vão para casa. A mãe, despreocupada.
- Vamos a casa de seu avô, no campo. Acho que te faria bem, não?
A menina não responde, só sente o arrepio.
Mas forte, no "fungo" que em outras partes do corpo.
Ela se assusta. O campo.
Clarissa sempre teve medo de mato. De noite ou de dia, no mato há coisas que picam, mordem, arranham, escondidas espreitam e as crianças comem.
E tinha medo do avô. O homem velho, alto, magro, sua pele era enrugada e cinza.
A voz rouca, que lhe abraçava e apertava como se a última vez fosse.
O avô nunca tinha lhe feito mal, mas não gostava dele, de seu aspecto, de seu cheiro.
Clarissa sonha essa noite. Se vê na casa do avô, no seu enorme quintal, que parece não ser quintal, e sim floresta, onde a casa é um apêndice.
Ela está na margem da mata, e tem medo.
Ela olha pra casa, chama a mãe.
A mãe surge no alpendre. Chama por ela, mas age como se não a visse.
"Estou aqui, mãe!", grita em sonho a menina, que é ela, Clarissa, a mesma que vê no espelho todo dia.
E a menina tem raízes, que se prendem fortes à terra.
Tenta correr para a mãe, assustada e chorosa.
E no aperreio, mal mexe os braços, coberto de casca e folhas.
Ela acorda, apavorada, olha os pés.
Deles, pequenas folhas escapam e os cobrem.
Ela grita pela mãe.

Os dias passam.
Clarissa, aflita, olha da sua casa a luz do sol mover-se. E assim conta as horas.
Ela não fala a mãe de seu medo.
De seus pesadelos.
Ela vê a luz e teme alimentar-se dela.
"Eu não sou árvore!", grita dentro de si e olha sua pele, esverdeando-se sem trégua.
Preocupada também com a mãe, a menina sofre em silêncio.
Se transforma na sombra densa de sua mudez, enquanto o remédio, exíguo fica sem efeito.
Voltam ao médico. Ele lhe passa cremes, um antibiótico.
E os dias passam, e ela pensa no tempo, que parece lhe mover descuidado para uma vontade de esverdá-la sem dó ou licença.
No campo.
E os dias passam.
E o dia chega.

Seu avô não é mais o mesmo.
A bengala que o sustenta é adereço novo.
Lhe empresta nobreza, mas entristece Clarissa.
"Se vovô fosse árvore e não eu, viveria mais", sussurra para suas pequenas folhas, em dupla esperança.
A primeira noite não lhe traz pesadelos.
Nem a segunda.
Na terceira, porém, ela se vê cercada.
As árvores que ela tem ignorado esses dias, trancada que ficara no quarto, vem lhe visitar.
As paredes não representam obstáculo.
A madeira da casa se dobra para receber as irmãs, vivas e frondosas.
Clarissa acorda assustada e ouve um barulho na janela.
Ela tem medo.
Observa as sombras e elas só se preenchem com mais horrores.
Desiste de apavorar-se e vi até a janela.
Quando abre, vê a árvore.
Um galho, fino e longo, bate constante contra janela quando esta se fecha.
Aberta, a árvore não incomoda Clarissa.
Pensa no sonho e decide, essa noite, dormir com a janela aberta.
Acorda banhada de sol.
E toma uma decisão.
Toma café da manhã com a mãe a avô e anuncia: "vou brincar".
A mãe sorri.
Clarissa sai aproveitando o sol e vai ter com árvores.
Ela as olha, desafiadora.
"Não tenho medo de vocês! Não tenho!", grita, longe da casa, já dentro da mata.
Não há resposta. Não audível.
Mas ela sente. O mundo se mexe.
Repentinamente assustada, febril, olha para suas folhas que crescem.
Pensa em correr, mas suas raízes, fincadas no solo úmido, enrodilham o mundo e suas pernas.
E se vê então, floresta.
Horror realizado, ela estremece.
E em mais um instante, só mais um, Clarissa, que escuta o a música que se forma apenas pelas árvores que cortam o vento, percebe.
Floresce.
E em profundo prazer de ser novo ser, desfalece.

O sono é sem sonhos.
Ela desperta menina.
A mãe acaricia sua testa. Lhe chama de "meu bem".
Ela toca a mão da mãe e seu rosto.
E nota, enfim, que suas folhas se foram.
Mas algo ficou. Fincou.
Algo verde.
Enraizado em si.
Verde.
E ela chora, feliz.
Sentindo, em suas lágrimas, o gosto do orvalho.

Serejo: Calamidade calamitosa

Por: Vicente Serejo

Numa sociedade exigente no trato da coisa pública, Senhor Redator, e de instituições imunes ao fascínio do poder, o estado de calamidade não seria nunca como tem sido nesses quase trinta dias da vigência do decreto que reconheceu ser desastrosa a situação da saúde. O estranho começa quando se constata que faltam médico, água e gás nos postos, como se tivéssemos retornado a antes do Sistema Único de Saúde quando os doentes municipais, estaduais e federais, como numa escala de direitos.

Se há um mérito na concepção do SUS – a sua prática é desastrosa – é ter eliminado a divisão de direitos diante do sistema público de saúde. Mas, a velha divisão de mandos só gerou desmandos e acabou subvertendo a idéia original. Hoje, quem depende de postos de saúde acaba sendo a escória da escória, o substrato dos desvalidos, párias abandonados, filhos perversos da exclusão. É que o governo e a prefeitura não somam, como se não fossem a própria representação do Estado como ente público.

A quem apelar, se as instituições civis, as sentinelas da sociedade, confundem o apoio com a perda de distância crítica e se deixam cair na malha de signatários diante de um noticiário que revela em informações, declarações e imagens, a mesma grave realidade? Não há calamidade. Nunca houve. O que há – falta isenção para reconhecer – é uma má gestão crônica que perdura há duas décadas, mas essa verdade causa incômodos aos aliados de hoje que ontem foram adversários dos mais ferrenhos.

O plano de emergência, suspensas como estão todas as exigências de certame licitatório, até hoje deixa faltar carne na despensa, álcool na farmácia e médico de plantão? Pior: registrar o absurdo só irrita aos poderosos e as instituições, quando é este, exatamente este, o papel do jornalismo. Quem responde pela falta de álcool nas farmácias e carne nas despensas hospitalares, como foi denunciado pela tevê, ao vivo? E aquelas macas nos corredores depois de tantos leitos anunciados? São truques?

Fizeram muito bem as instituições representativas – os conselhos de medicina e de saúde – quando reagiram ao fascínio da jactância. Não aceitaram ser signatários passivos do velho escapismo de pré-dividir a responsabilidade como forma de diluir um dever que é dos governos municipal e estadual. Ficaram contra a uma tomada de posição forte? Não. Ficaram contra o espetáculo que trinta dias depois nada mudou. Mesmo que para alguns o remorso não seja sequer um detalhe incômodo.

Tomara que as desculpas não venham embrulhadas no papel celofane das leis e seus arranjos retóricos. Aqueles que não nascem do talento e do destemor diante da verdade, mas calam quando não são cúmplices conveniência, corporativismo ou coleguismo. A sociedade precisa dos quem não temem gritar. De instituições livres e independentes. É delas que espera o grito que não nasce para ferir ninguém, mas com a força moral capaz de estilhaçar as vidraças dos gabinetes e dos salões nobres.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Elis: Maria, Maria


Forró e velório

 Geraldo de Oliveira

Maria. Simplesmente Maria para os amigos. Trabalhadeira e, acima de tudo, de bem com a vida. Além de ser uma das poucas primas que tenho verdadeiro apreço. Mas, vamos ao que interessa: Maria tem duas únicas paixões na vida: Dançar forró e participar (pro-ativamente) de velórios.

_Olhe, Junior (é assim que ela me chama), quer me ver chateada: avise-me que morreu alguém que eu conheço e que eu tenha perdido o velório. É o último momento da pessoa aqui na terra. Eu acho que é o mais importante. É nesta hora que estamos mostrando o resumo de nossas vidas. Acho velório muito chique. E olhe que eu choro junto à família e só tenho como cumprida minha missão, quando, também, vou ao enterro.

_Mas, e o forró como é que fica depois de tanta tristeza? Perguntei-lhe.

_ O forró é a comemoração do retorno à vida. Já teve ocasião que sai de meu trabalho no sábado às doze horas; corri para um velório de uma amiga e ainda fui ao enterro às cinco horas da tarde. Este enterro foi em outra cidade. Na volta, era quase umas oito horas. Pense! Desci do ônibus fretado pela família em frente a um forró. Liguei para casa e avisei que iria chegar no dia seguinte. Foi cansativo: trabalho, velório -com muito choro- e enterro. Mas, quando eu ouvi, a sanfona tava me chamando. Já estava em outra sintonia. Dancei em homenagem à minha amiga até as cinco horas da manhã. Pensa que acabou? Nada! Cheguei em casa, fui lavar roupa e depois fazer o almoço do domingo. Tirei um cochilo à tarde e, ainda, fui até à casa da finada para ver como estavam os familiares. Na segunda-feira, tudo voltou ao normal.... Se bem que morrer e dançar forró é também muito normal.

Pois a vida é isso: nascer, dançar (que representa a felicidade) e depois morrer. Minha prima em sua simplicidade me mostrou o quanto sou ingênuo e estúpido ao imaginar a vida com toda a complexidade e pós-modernidade que tanto apregoa a academia.

Ao fim de nossa conversa me arrancou uma promessa:

-Junior! Você não vai faltar ao meu velório, né? Até porque se você for primeiro eu estarei lá com tudo que tenho direito: choro, servir cafezinho, acudir as mulheres escandalosas e, claro, ir ao enterro.... Você            que é antropólogo e estuda os nossos costumes me responda: antigamente se tinha costume de beber o morto. Então, por que não retornamos estas tradições. Até acrescentaria uma sugestão: podia se fazer tudo no dia seguinte, assim: bebe-se o morto a dança-se para comemorar o resto de vida que ainda temos?

Fiquei mudo e sem resposta. Mas, com o peito cheio de orgulho de ter uma prima como Maria; que me ensinou tanto em tão pouco tempo.

Serejo: A nova classe média

 Por: Vicente Serejo

Vaguinaldo Marinheiro, da Folha de S. Paulo, tem toda razão quando umedece com bom humor e ironia e imagina que a nova classe média, aquela nascida das estatísticas petistas, é a moça bonita que todos querem tirar para dançar. E completa: uma moça que de 2003 a 2011 se multiplicou em quarenta milhões de pessoas, segundo dados da sempre insuspeita Fundação Getúlio Vargas. E ainda acrescenta: o mesmo que a população de 31 países europeus ou de toda a Argentina para citar um exemplo vizinho.

A coisa é tão séria que a nova classe média fez a antiga Classe ‘C’ representar hoje um grande contingente responsável por 54% da população brasileira. Em moeda eleitoral, se alguém prefere uma comparação mais popular, decide uma disputa para presidente do Brasil. Este dado, aliás, mostra que o PT está certo quando fez nascer uma nova classe média com o sentimento de conquista social e gratidão nos seus integrantes não pelo grau de instrução ou politização, mas pelo seu novo poder de compra.

Segundo analisa Vaguinaldo, os efeitos já são claros no tecido social: a propaganda começa a buscar novos nichos e é um dos mais sensíveis termômetros para se medir sintomas de ascensão social.

Querem saber? As novelas da Globo, tipo ‘Cheias de Charme’ e ‘Avenida Brasil’, apostam nos núcleos da nova classe média e relegam o consumidor do tipo AAA – ‘brancos e ricos – a um território limitado e já conquistado.  A meta é vender produtos compatíveis com o poder aquisitivo dos novos consumidores.

Um das estratégias mais bem sucedidas, segundo a matéria de duas páginas de Vaguinaldo, foi da Tim. O grupo telefônico percebeu muito cedo que estava nas favelas do Rio um dos mais expressivos mercados da nova classe média com modelos e preços dimensionados para o público-alvo. O mais novo sintoma vem do Grupo Fleury, o importante laboratório de análises clínicas do Brasil, com sede em São Paulo, que redimensionou preços e abriu trinta unidades na capital para atender à nova classe média.

Pesquisas qualitativas mostram que o novo público valoriza grandes lições de vida, o trabalho e o esforço, e condena os que não lutam pela melhoria social. A vida, para muitos deles, toma a forma de uma fábula da vitória pessoal com dedicação. A Tim ambienta anúncios no Complexo do Alemão para vender celular com acesso à Internet por preços mais baixos. O mesmo acontece com planos de saúde corporativos, academias de ginástica e a Cacau, marca da Kopenhagen que atende à nova classe média.

O problema é a discrepância dos cálculos. A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República considera a nova classe média aquela com renda média mensal de R$ 1.019.00. O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas aponta uma renda familiar entre R$ 1.200,00 e R$ 5.174,00. Já área técnica do Ipea – o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o que houve no Brasil, argumenta Márcio Pochmann, foi apenas um aumento de renda da classe trabalhadora. E nada mais.

Poroca: Não Espalhe

José Carlos L. Poroca

Executivo do segmento shopping centers

O cinema está na lista dos ‘meus preferidos’. Não vou dizer a ordem que ocupa na lista para não gerar intrigas, ciúmes e ofensas de qualquer natureza. Para resumir, vou dizer que um filme como “A Dançarina e o Ladrão” (“El Baile de La Victoria”) oferece deleite equivalente a duas taças de bom vinho. Chileno, de preferência. Coincidências á parte, a história se passa no Chile e tem participação de espanhóis, chilenos, argentinos e brasileiros, na direção, na equipe técnica e no elenco. Não sei se a fita, que é de 2009, entrou no chamado circuito comercial, o que não importa. Importa, sim, a sua a beleza, a seriedade e qualidade que se consegue mostrar numa boa peça de ficção que se mistura com dados e fatos da história real.

Só a participação de Ricardo Darin no elenco já proporcionaria retorno de 50% do valor investido. É um daqueles atores que se dão bem em qualquer papel e sabem interpretar como poucos um recém libertado prisioneiro político (como na “A Dançarina...”), um detetive, um trambiqueiro ou um diretor de um clube falido. O diretor, por sua vez, já deu mostra de sua capacidade (ganhou um Oscar pelo “Belle Époque”) e tem uma relação estreita com o Brasil. Realizou um documentário (“O Milagre do Candeal”) sobre uma escola de músicos para jovens numa comunidade de baixa renda existente na capital baiana; e outro, sobre Tenório Jr. - um músico brasileiro desaparecido na década de 70 (Século XX) durante a repressão argentina.

O filme me encantou, porque consegue mostrar de forma eficiente o lado ruim e os reflexos de uma ditadura num país - a do Chile, sob o comando do Gen. Pinochet, foi uma das mais duras -, através de uma história que prende o espectador do início ao fim, com diálogos inteligentes amparados por uma fotografia de primeira e de um roteiro bem conduzido, atestando o que sempre defendi: o cinema é a arte mais completa, por reunir várias artes numa só. Se o diretor errar na mão, dificilmente conseguirá salvar o teatro, a trilha e a interpretação. Há exceções, como o que ocorreu algumas vezes em filmes que teve a participação do ator Robert Mitchum.

Mitchum fez mais de 130 filmes e não recebeu a que consideram a maior estatueta durante os seus mais de cinquenta anos de carreira. Era o famoso “cão chupando manga”, pois atuava com a mesma desenvoltura como mocinho ou como bandido. Faço uma reverência ao ator, não pela qualidade de interpretação (não foi um dos “grandes”), mas pela sinceridade que, dizem, sempre utilizava fora das telas. Certa vez, ao ser indagado, respondeu: “faço filmes para pegar mulher, para fumar erva e levantar uma grana”. Mais sinceridade, impossível.

Sinceridade como a do ator ‘bad boy’, caíram em desuso, foram para o espaço, em qualquer meio. As pessoas dizem ‘sim’ quando querem dizer ‘não’, e vice-versa. Outro dia, vendo um candidato na tevê, quase caí do susto pelo elenco de promessas que, já se sabe, não serão cumpridas. Pensei comigo: “deve estar brincando...”. Robert Mitchum não fez escola.