quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Serejo: Tradição e ruína


Por Vicente Serejo

Fui menino de um tempo mais fácil, Senhor Redator. Os meninos eram ingênuos, não precisavam ser inteligentes tão cedo, como hoje. E as meninas, precoces na sensualidade, ficavam moças antes que os meninos se tornassem rapazes. A vida, em tudo, era mais simples. O rádio era um móvel da sala, depois perdeu o espaço para a radiola e, por fim, a televisão. Hoje nem o computador tem mais esse status todo. Já nasceu no escritório, se mudou para o quarto e acabou – quem diria – insignificante de tão pequeno.

Não é bom ser tão objetivo, mas desconfio que o mundo industrial substituiu os sonhos pelos carros, eletrodomésticos e equipamentos disso e daquilo. Agora, nesta fase pós-industrial, os valores são outros nessa miniaturização dos desejos de consumo e tudo ficou mais vulgar. As expressões ganharam um sentido de posse. É como se a estratificação da classe média tivesse produzido uma competição velada e sem fim. Ter, não basta. É preciso ter diferente. Como algo inatingível sinalizando distância econômica.

Tínhamos diferenças, e percebíamos, mas não estabeleciam impossibilidades de convivência como hoje. Agora, não. São detalhes que separam. Fossos que impedem a passagem. Pior: não ser é não poder ter. Os que podem abrem mão da lógica racional, da visão crítica, do questionamento. Quem é contra é por inveja. O rico não sabe mais ser rico. Ostenta e sai comprando tudo, até a glória, se encontrar à venda. E o pobre, descompensado, a imitar o rico, faz do simulacro a forma estranha de uma nova civilização.

A vida não era tão banal a ponto de separar ricos e pobres pela ostentação, mas estratificada por uma tradição que podia ser injusta algumas vezes, mas não era vulgar. Agora que a tradição está morta e o status pode ser conquistado apenas pela via econômica, os ricos ficaram iguais, ainda que alguns deles sequer devessem sentar à sala de visitas. E das ruínas enriquecidas de dinheiro nasceu a falsa aristocracia que fez nascer um mundo sem elites, sem pensadores, sem líderes, cheios de donos, chefes e chefetes.

E não há o que fazer Senhor Redator, a não ser contemplá-los na faina e na volúpia dos modos e manias. São os estilosos de toda espécie. Como enfrentar a ignorância rica? Não há como. A barbárie não nasce da pobreza. Não era uma barbárie que caracterizava a sociedade rude dos senhores e vaqueiros, na belíssima expressão de Euclydes da Cunha n’Os Sertões. Lá reinava o compadrio, sócios que eram na lida e na vida, na miséria da seca e na riqueza do inverno, unidos por um mando manso e um olhar de amigo.

Daquela sociedade feita de tradição e convívio, nada restou. Nem da aristocracia escravocrata da velha e morta civilização do açúcar. Nada de valor nasceu como herança social do passado. A não ser a sagacidade dos apostadores que perceberam, no atrito das esferas do público e do privado, o ritmo sonoro da especulação. São eles os novos nômades. Os inventores da tradição do importante é vencer, é ganhar, é levar vantagem em tudo. Nascido no tal jeitinho brasileiro que um dia floresceu nas ruínas da tradição.

 

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