domingo, 18 de novembro de 2012

Serejo: Publicidade e preconceito

Data: 22 outubro 2012 - Hora: 18:06 - Por: Vicente Serejo

 Tem horas que a gente tem que passar a bola. É a hora do passe. Fiquei fascinado com a questão do filme publicitário do colégio CEI Mirassol. Um tema fascinante, mas acabei convencido de que não faria melhor do que o professor Alysson Freire. Não pelo erro que aponta – essa é uma opinião, mas não é a única – mas por seu olhar sobre a questão. Opinião que esta coluna transcreve em nome da pluralidade das ideias, afinal o debate na área da comunicação e da publicidade não se pode mais não esconder o enfrentamento nas sombras da intolerância.

 Assim como a nossa fala pode por vezes nos trair e revelar aquilo que de forma alguma confessaríamos abertamente, também as imagens revelam sem que se dê conta o que de fato pensamos sobre o mundo, ainda que a intenção e o objetivo tenham sido radicalmente outros. Isto porque as imagens condensam crenças, significados, visões de mundo, etc.. Por isso que, às vezes, uma imagem pode valer mais do que mil palavras.

 Foi exatamente nesta “armadilha das imagens” em que incorreu a campanha publicitária do Colégio CEI Mirassol, elaborada pela empresa Criola. A propaganda exibe uma sessão de ultrasonografia onde os pais, cheios de orgulho e planos, especulam e imaginam a futura profissão do filho. Os desejos e expectativas dos pais sobre o “que o filhinho vai ser quando crescer”, se médico, juiz ou engenheiro, são intercalados com imagens depreciativas de outras ocupações, digamos, menos prestigiadas; “pai-de-santo”, juiz de futebol e palhaço.

 A cada expectativa e profissão imaginada pelos pais corresponde uma outra ocupação e futuro em que se vai do sonho à frustração, do sucesso ao fracasso, do orgulho à vergonha, do prestígio social e status à condição de menosprezado.

 O ser médico, engenheiro ou juiz servem como metáforas para definir o que é um futuro e uma pessoa de sucesso e prestígio ao passo que “macumbeiro”, palhaço e juiz de futebol servem para definir as marcas do fracasso, da vergonha e do desprestígio social. De um lado, os notáveis e exitosos, de outro, a ralé.

 Assim, o médico, símbolo máximo da credibilidade e da ciência é contrastado com um desacreditado e mediúnico “pai-de-santo” – num claro estigma e desrespeito a outras crenças religiosas; o engenheiro, símbolo da sisudez dos cálculos tem o seu oposto no palhaço sem graça; e, por último, o juiz de direito, figura que exprime o ápice da autoridade e do respeito possui como o seu avesso, o contestável juiz de futebol, alvo máximo do desrespeito alheio e de todas as torcidas. As oposições entre as profissões exprimem, na verdade, oposições morais; credibilidade/incredibilidade, respeito/desrespeito, sucesso/fracasso. Essas oposições morais definem o valor das profissões, e, por consequência, o valor das próprias pessoas.

 Ao final, a propaganda encerra com uma frase que mais parece uma contundente chantagem: “não basta sonhar com o futuro do seu filho, é preciso fazer a escolha certa”. Ou seja, o “futuro certo” e a “profissão certa” para que seu filho possa ser “gente” dependem da escolha pela “Escola Certa”, isto é, aquela que garante atingir a expectativa da santíssima trindade médico-engenheiro-juiz; do contrário, aos pais restaria não apenas ter de se contentar com sonho, mas com a possibilidade real de vivenciar o fracasso, a frustração e a vergonha.

 A propaganda não é apenas preconceituosa e ofensiva, mas reveladora das hierarquias sociais e morais que estão depositadas na maneira como as classes médias altas brasileiras enxergam e dividem o mundo e as pessoas. Ele revela, portanto, o preconceito profundo em que se sustenta a visão de mundo dessas camadas, fundamentado particularmente na ideia da existência de ocupações e atividades superiores e mais importantes, que brindam reconhecimento e distinção social, em contraposição àquelas avaliadas como inferiores e menos importantes, marcadas pelo menosprezo e desrespeito. Eis aí a medida com a qual cada um será avaliado como alguém de sucesso e significativo para a sociedade ou simplesmente como um “fracassado”, “inútil” e “invisível”.

 É bem verdade que não foi o CEI que produziu o vídeo. Porém, sua aprovação expressa mais do que uma infelicidade: exprime a aceitação e reconhecimento da escola do conteúdo e das mensagens contidas, ainda que ela não tenha se dado conta dessas dimensões mais latentes. Muitos podem se surpreender e lamentar que uma instituição de educação admita ou deixe passar despercebido tais alusões preconceituosas e estigmatizadoras. Mas, de modo algum, isso é uma surpresa.

 Afinal, conforme sustenta o sociólogo Jessé Souza, numa sociedade que consente e naturaliza a produção e classificação de “gente” e cidadãos, de um lado, e “subgente” e “subcidadãos”, de outro, é evidente que tal consenso se manifeste, ora de modo visceral ora de modo sutil, nas instituições de educação, sobretudo naquelas escolas voltadas para a formação das classes médias alta.

 Que a escola e os educadores que a integram reavaliem a “pedagogia” contida na propaganda, pois a tarefa essencial da educação e das escolas na formação das pessoas é contribuir para a sua emancipação. Só podemos falar de emancipação quando esta é, também, uma emancipação dos preconceitos, quer dizer, a superação de seu poder sobre nós, nossos pensamentos e atos. E isto somente é possível questionando e criticando concepções sociais como as que estão presentes na peça publicitária.

 *) Professor de Sociologia. Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais – UFRN. Editor e integrante do Conselho Editorial da Carta Potiguar. Contato: alysonfreire@cartapotiguar.com

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