domingo, 18 de novembro de 2012

Serejo: A Odisséia de Dorian

Data: 17 novembro 2012 - Hora: 18:03 - Por: Vicente Serejo

 Ao prefaciar a edição brasileira do Dicionário de Mitos Literários, de Pierre Brunel, até hoje considerado um monumento do olhar francês sobre a mitologia, Nicolau Sevcenko confessa que o poema Ulisses, de Fernando Pessoa, foi uma iluminação reveladora do mito, uma força fixadora da realidade. E por isso a literatura é a lira do homem moderno a cada instante de suas reinvenções.

 O êxtase de Sevcenko se estende no olhar de Dorian Gray Caldas sobre o mito, mas sem fazer de cada ensaio só a narrativa de um leitor apaixonado. Talvez se repita nesta que também é uma viagem mágica, aquele instante de grande visão de Blanchot ao perceber que a vitória de Ulisses não foi resistir ao amavio do canto das sereias, mas fundir sua voz à própria voz de Homero.

 Aqui, como na Odisséia, não importa saber o destino das sereias. Talvez seja verdadeira a notícia de que elas tenham caído no mar. Importa perceber o papel de Dorian, como um Ulisses, que não deseja substituir a Homero, mas viaja com a mesma força narrativa inaugural, a desenhar com a sua palavra poética, novas e fundadoras leituras sobre um velho imaginário que parecia esgotado.

Na sua visão mítica, Dorian se deixa amarrar ao mastro do seu barco porque também não é prisioneiro de certezas. De ouvidos abertos, procura nas grandes vozes do mundo o caminho para compreender o novo. E, como Todorov, sabe que o canto das sereias, essa alegoria do sublime, morre de silêncio para a vida surgir, assim como a literatura só nasce com a morte do apenas real.

 Como é bonito acompanhar Dorian Gray na visão metafísica de Leonardo da Vinci, não para imitá-lo na técnica, mas para fazer sua parte no sonho humano e reconhecer no homem sua alma de pássaro. De anjo, águia ou condor. Na tessitura dos entrelaçamentos com os ícones mais modernos, como o Super-Homem que Dorian olha como um sinal de Nietzsche – tão dionisíaco e tão apolíneo, entre a paisagem exuberante e a pobre solidão do homem na sua espera angustiada de ser Deus.
É instigante seguir seu olho perscrutador, enfiar-se no próprio olho e sair olhando com ele, ao mesmo tempo e numa sensação de simultaneidade absoluta – as sombras e as luzes do desenho de Hundertwasser. Talvez uma outra forma de entrelaçamento, aquela de Adorno ao vislumbrar no canto das sereias – para ouvi-lo mais uma vez – o mítico e o racional na busca do esclarecimento.

 Diante deste livro que nasce como verdadeiro monumento da ensaística do Rio Grande do Norte, a sensação é a de ouvir as grandes vozes do silêncio, para usar a belíssima expressão de André Malraux. De cada poema, quadro, escultura. Da vida anoitecida pelo tempo. Vozes ouvidas e às vezes arrancadas, sem temer o silêncio que para Kafka foi a maior arma das sereias.

 Em Dorian, principalmente neste livro, a técnica e a arte do ensaio se entrelaçam de forma definitiva e magistral. Sem prender o olhar ao esquadro de modelos, como há de fazer um grande escultor. A erguer, na harmonia e na aparente contradição das formas, a grandeza que para os outros é o inesperado. Como Picasso diante de Guernica, Dorian entrelaça na sua arquitetura ensaística os arabescos do bem e do mal, do crime e da esperança, do grotesco e do sublime. Para depois voltar ao seu mar antigo. Como um Ulisses.

Ainda que seja apenas o velho e mesmo mar, inesgotável e surpreendente, que um dia inaugurou em seu espírito o grande destino de criador de mundos.

 Eis aqui este criador, embriagado de palavras, cores e formas, a revelar o milagre da criação.

 Natal, 2011, quando ardem as fogueiras de São João.

 Vicente Serejo

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