Ao prefaciar a edição
brasileira do Dicionário de Mitos Literários, de Pierre Brunel, até hoje
considerado um monumento do olhar francês sobre a mitologia, Nicolau Sevcenko
confessa que o poema Ulisses, de Fernando Pessoa, foi uma iluminação reveladora
do mito, uma força fixadora da realidade. E por isso a literatura é a lira do
homem moderno a cada instante de suas reinvenções.
O êxtase de Sevcenko
se estende no olhar de Dorian Gray Caldas sobre o mito, mas sem fazer de cada
ensaio só a narrativa de um leitor apaixonado. Talvez se repita nesta que
também é uma viagem mágica, aquele instante de grande visão de Blanchot ao
perceber que a vitória de Ulisses não foi resistir ao amavio do canto das
sereias, mas fundir sua voz à própria voz de Homero.
Aqui, como na
Odisséia, não importa saber o destino das sereias. Talvez seja verdadeira a
notícia de que elas tenham caído no mar. Importa perceber o papel de Dorian,
como um Ulisses, que não deseja substituir a Homero, mas viaja com a mesma
força narrativa inaugural, a desenhar com a sua palavra poética, novas e
fundadoras leituras sobre um velho imaginário que parecia esgotado.
Na sua visão mítica, Dorian se deixa amarrar ao mastro do seu
barco porque também não é prisioneiro de certezas. De ouvidos abertos, procura
nas grandes vozes do mundo o caminho para compreender o novo. E, como Todorov,
sabe que o canto das sereias, essa alegoria do sublime, morre de silêncio para
a vida surgir, assim como a literatura só nasce com a morte do apenas real.
Como é bonito
acompanhar Dorian Gray na visão metafísica de Leonardo da Vinci, não para
imitá-lo na técnica, mas para fazer sua parte no sonho humano e reconhecer no
homem sua alma de pássaro. De anjo, águia ou condor. Na tessitura dos
entrelaçamentos com os ícones mais modernos, como o Super-Homem que Dorian olha
como um sinal de Nietzsche – tão dionisíaco e tão apolíneo, entre a paisagem
exuberante e a pobre solidão do homem na sua espera angustiada de ser Deus.
É instigante seguir seu olho perscrutador, enfiar-se no
próprio olho e sair olhando com ele, ao mesmo tempo e numa sensação de
simultaneidade absoluta – as sombras e as luzes do desenho de Hundertwasser.
Talvez uma outra forma de entrelaçamento, aquela de Adorno ao vislumbrar no
canto das sereias – para ouvi-lo mais uma vez – o mítico e o racional na busca
do esclarecimento.
Diante deste livro que
nasce como verdadeiro monumento da ensaística do Rio Grande do Norte, a
sensação é a de ouvir as grandes vozes do silêncio, para usar a belíssima
expressão de André Malraux. De cada poema, quadro, escultura. Da vida
anoitecida pelo tempo. Vozes ouvidas e às vezes arrancadas, sem temer o
silêncio que para Kafka foi a maior arma das sereias.
Em Dorian,
principalmente neste livro, a técnica e a arte do ensaio se entrelaçam de forma
definitiva e magistral. Sem prender o olhar ao esquadro de modelos, como há de
fazer um grande escultor. A erguer, na harmonia e na aparente contradição das
formas, a grandeza que para os outros é o inesperado. Como Picasso diante de
Guernica, Dorian entrelaça na sua arquitetura ensaística os arabescos do bem e
do mal, do crime e da esperança, do grotesco e do sublime. Para depois voltar
ao seu mar antigo. Como um Ulisses.
Ainda que seja apenas o velho e mesmo mar, inesgotável e
surpreendente, que um dia inaugurou em seu espírito o grande destino de criador
de mundos.
Eis aqui este criador,
embriagado de palavras, cores e formas, a revelar o milagre da criação.
Natal, 2011, quando
ardem as fogueiras de São João.
Vicente Serejo
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