Ormuz Barbalho Simonetti lança hoje, início da noite, na Academia
Norte-Rio-Grandense de Letras suas memórias sobre os hábitos, costumes e
tradições da praia de Pipa no tempo de seus avós. Por isso transcrevo o
prefácio que escrevi para o seu livro que é também um registro documental e
visual dos traços culturais de um lugar que foi uma vila e hoje é o maior e
mais internacional balneário turístico do Rio Grande do Norte.
Lendo uma vez um ensaio
do professor Milton Santos, o grande erudito baiano, já desaparecido, e que nos
ensinou as melhores lições sobre a geografia humana – no sentido de fixar o
homem e seus espaços – bati os olhos numa inesperada citação de Winston
Churchill que dizia assim: “Primeiro construímos nossas casas; depois são elas
que nos constroem”.
Hoje, vejo não ser
muito diferente da noção de lugar. Nós também construímos os espaços de
vivência e, depois, esses espaços nos constroem. É tanto, que as pessoas do
interior costumam se referir ao seu território de origem – cidade, vila ou
povoado – com a expressão “meu lugar”.
Foi o que senti lendo
este livro sobre a história da Pipa, a praia dos avós de Ormuz, nosso maior
genealogista. Primo, não apenas pelas leis do bem-querer, e já seria bastante,
mas, também, pelas velhas raízes Barbalho Simonetti, família da minha avó
Edith, personagem humilde da genealogia que ele pesquisou para ser a própria
História da origem e dos caminhos da nossa gente.
Porque este A praia da
Pipa do Tempo dos meus avós conta a História de um lugar antigo que a família
de Ormuz escolheu para vencer o calor dos verões. E, se escolheu, é suficiente
o pioneirismo para fazê-la descobridora do lugar. Descoberta no sentido de
escolha. Eles foram inventores de um espaço vivencial que hoje, com as
narrativas de Ormuz, é recriado, como se fosse possível inventar um céu, o Céu
da Pipa, e nele soprar vida em todos os personagens de sua história humana.
Humana, porque vai além de sua toponímia, da história remota ou recente dos
seus lugares, da vida de seus personagens, na austeridade de uns ou na
simplicidade de outros.
Ormuz foi capaz de
remontar o mosaico das recordações, mas sem a pretensão de escrever uma
história formal. Talvez, e sem querer, uma pequena história, mas bem no modelo
dos franceses quando ensinaram que é preciso não esquecer de olhar a nova
história no seu cotidiano – sem reis, sem heróis e sem mártires.
Partindo de um
coloquialismo que assume desde o título, afinal é a história de um lugar onde
viveram seus avós, Ormuz Barbalho Simonetti foi um bom caçador de datas, fatos
e nomes. Capaz de não perdê-los de vista, e de reuni-los numa moldura de
histórias humanas sem as quais a própria História da Pipa não teria ido além de
uma historiografia. Revelada num conjunto de artigos e crônicas nascidos nas
páginas de um jornal, e aqui reunidos buscando a perenidade do livro.
Talvez este corte
proustiano, no qual renasce a memória da infância no seu rol de lembranças
confessadas, tenha mesmo a função de derramar sobre os olhos dos leitores o mel
da saudade. Faz sentido. A memória é a forma de salvar um lugar da sua
mundialização, conceito que uniformiza, sem seus traços únicos, todos os
espaços do Homem. Só o imaginário pode preservar sua unicidade e singularidade
físicas e humanas, como se vencesse o desmonte que o tempo sabe engendrar.
E Ormuz é cuidadoso no
seu jeito de olhar e anotar. Vai, capítulo a capítulo, registrando tudo como se
nada pudesse ser esquecido. Em cada lance de olhar, um retrato detalhado da sua
visão cheia de saudade. Das velhas viagens abrindo caminhos, os primeiros
veranistas, o desenho mágico de hábitos, costumes e tradições. Salva do
esquecimento, como se tirasse do rescaldo das lembranças, os traços
fundamentais de veranistas e nativos, gente de uma vila que se fez com um povo
do mar.
É livro que nasce
lentamente e surge docemente, como a água fresca das cacimbas, refletindo no
espelho mágico as lembranças de um tempo imenso de vida. Como se repetissem,
num milagre de transição, os versos de Camões quando fala da dor das coisas que
passaram.
Mas, Ormuz também
ergue a cabeça, alonga seu olhar e se transmuda. É um biólogo a registrar a
fauna marinha. Um botânico a contar a vida de suas árvores. Um ouvinte a
guardar o canto dos pássaros da sua infância. Numa verdadeira cartografia
sentimental, os seus textos são também desenhos mapeando lembranças. Dos
pescadores, das velhas rendeiras com os bilros pulando nas mãos, dos tiradores
de coco, dos carpinteiros navais.
É como se Ormuz
Barbalho Simonetti, num gesto profundamente humano, fizesse do seu livro sobre
a Praia da Pipa uma nova Arca de Noé. E nela pudesse levar personagens, peixes,
árvores, bichos e pássaros do seu lugar para a grande ilha da memória. E,
assim, salvá-los do dilúvio do esquecimento.
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