terça-feira, 20 de novembro de 2012

Serejo: O homem e seu lugar

Data: 25 outubro 2012 - Hora: 18:01 - Por: Vicente Serejo

 Ormuz Barbalho Simonetti lança hoje, início da noite, na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras suas memórias sobre os hábitos, costumes e tradições da praia de Pipa no tempo de seus avós. Por isso transcrevo o prefácio que escrevi para o seu livro que é também um registro documental e visual dos traços culturais de um lugar que foi uma vila e hoje é o maior e mais internacional balneário turístico do Rio Grande do Norte.

 Lendo uma vez um ensaio do professor Milton Santos, o grande erudito baiano, já desaparecido, e que nos ensinou as melhores lições sobre a geografia humana – no sentido de fixar o homem e seus espaços – bati os olhos numa inesperada citação de Winston Churchill que dizia assim: “Primeiro construímos nossas casas; depois são elas que nos constroem”.

 Hoje, vejo não ser muito diferente da noção de lugar. Nós também construímos os espaços de vivência e, depois, esses espaços nos constroem. É tanto, que as pessoas do interior costumam se referir ao seu território de origem – cidade, vila ou povoado – com a expressão “meu lugar”.

 Foi o que senti lendo este livro sobre a história da Pipa, a praia dos avós de Ormuz, nosso maior genealogista. Primo, não apenas pelas leis do bem-querer, e já seria bastante, mas, também, pelas velhas raízes Barbalho Simonetti, família da minha avó Edith, personagem humilde da genealogia que ele pesquisou para ser a própria História da origem e dos caminhos da nossa gente.

 Porque este A praia da Pipa do Tempo dos meus avós conta a História de um lugar antigo que a família de Ormuz escolheu para vencer o calor dos verões. E, se escolheu, é suficiente o pioneirismo para fazê-la descobridora do lugar. Descoberta no sentido de escolha. Eles foram inventores de um espaço vivencial que hoje, com as narrativas de Ormuz, é recriado, como se fosse possível inventar um céu, o Céu da Pipa, e nele soprar vida em todos os personagens de sua história humana. Humana, porque vai além de sua toponímia, da história remota ou recente dos seus lugares, da vida de seus personagens, na austeridade de uns ou na simplicidade de outros.

 Ormuz foi capaz de remontar o mosaico das recordações, mas sem a pretensão de escrever uma história formal. Talvez, e sem querer, uma pequena história, mas bem no modelo dos franceses quando ensinaram que é preciso não esquecer de olhar a nova história no seu cotidiano – sem reis, sem heróis e sem mártires.

 Partindo de um coloquialismo que assume desde o título, afinal é a história de um lugar onde viveram seus avós, Ormuz Barbalho Simonetti foi um bom caçador de datas, fatos e nomes. Capaz de não perdê-los de vista, e de reuni-los numa moldura de histórias humanas sem as quais a própria História da Pipa não teria ido além de uma historiografia. Revelada num conjunto de artigos e crônicas nascidos nas páginas de um jornal, e aqui reunidos buscando a perenidade do livro.

 Talvez este corte proustiano, no qual renasce a memória da infância no seu rol de lembranças confessadas, tenha mesmo a função de derramar sobre os olhos dos leitores o mel da saudade. Faz sentido. A memória é a forma de salvar um lugar da sua mundialização, conceito que uniformiza, sem seus traços únicos, todos os espaços do Homem. Só o imaginário pode preservar sua unicidade e singularidade físicas e humanas, como se vencesse o desmonte que o tempo sabe engendrar.

 E Ormuz é cuidadoso no seu jeito de olhar e anotar. Vai, capítulo a capítulo, registrando tudo como se nada pudesse ser esquecido. Em cada lance de olhar, um retrato detalhado da sua visão cheia de saudade. Das velhas viagens abrindo caminhos, os primeiros veranistas, o desenho mágico de hábitos, costumes e tradições. Salva do esquecimento, como se tirasse do rescaldo das lembranças, os traços fundamentais de veranistas e nativos, gente de uma vila que se fez com um povo do mar.

 É livro que nasce lentamente e surge docemente, como a água fresca das cacimbas, refletindo no espelho mágico as lembranças de um tempo imenso de vida. Como se repetissem, num milagre de transição, os versos de Camões quando fala da dor das coisas que passaram.

 Mas, Ormuz também ergue a cabeça, alonga seu olhar e se transmuda. É um biólogo a registrar a fauna marinha. Um botânico a contar a vida de suas árvores. Um ouvinte a guardar o canto dos pássaros da sua infância. Numa verdadeira cartografia sentimental, os seus textos são também desenhos mapeando lembranças. Dos pescadores, das velhas rendeiras com os bilros pulando nas mãos, dos tiradores de coco, dos carpinteiros navais.

 É como se Ormuz Barbalho Simonetti, num gesto profundamente humano, fizesse do seu livro sobre a Praia da Pipa uma nova Arca de Noé. E nela pudesse levar personagens, peixes, árvores, bichos e pássaros do seu lugar para a grande ilha da memória. E, assim, salvá-los do dilúvio do esquecimento.

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