Data: 17 outubro 2012 - Hora:
18:00 - Por: Vicente Serejo
Ora, ora, e eu que imaginava já ter guardado
nos salões da alma tudo quando seria doloroso esquecer, de repente descubro na
página de um jornal português um Mercado da Saudade. Cheio de certeza, pensei
comigo: bobagem. O que cada coisa possa dizer de mim, já tenho. Dos meus
teréns, modéstia à parte, cuido eu. Como se tudo coubesse num sótão, nem que a
sua noite tenha a iluminar apenas a chama bruxuleante de uma velha lamparina a
projetar nas paredes as réstias do passado.
Ninguém, Senhor Redator, se desfaz tão
facilmente da vida que passou. Há em cada coisa um pouco daquela dor
existencial das coisas que passaram como avisou Camões. Esses pedaços de dor
vão ficando aqui e ali. São os grãos da memória. Em Braga, leio no Jornal de
Notícias, de Lisboa, um mercado cuidou de ter nas suas prateleiras comidas,
bebidas e objetos tocados de uma certa e doce nostalgia. É lá que os
portugueses matam a saudade de tudo que um dia a noite dos tempos devorou.
Em Lisboa, no fim da pequena rua do lado da
velha e bela Livraria Bertrand, conheci há uns cinco anos uma loja assim. E
fiquei freguês. Não digo de todos os anos. Só quando posso, de vez em quando.
Lá comprei uma tabuada igual à da infância, uns poucos livros e as réplicas
perfeitas das três andorinhas do famoso Bordalo e que minha avó tinha no
terraço da sua casinha de duas arcadas, ali na Rua Potengi. Como se voassem no
céu branco da parede, elas azuis, hoje azulando na saudade.
Trouxe exatamente três, Senhor Redator, em
três tamanhos diferentes, e para que repitam aqui entre prateleiras de livros
velhos o mesmo vôo do meu tempo de menino, quando cheguei de Macau para estudar
na capital. Do lado, tinha o ABC com a sua sede moderníssima, seu chão em quadrados
pretos e brancos, suas festas elegantes e inacessíveis, cercada de taças e
troféus. O ABC dos filmes de Tarzan, com Johnny Weissmuller com aqueles seus
gritos na selva cheia de feras perigosíssimas.
Os portugueses, a exemplo da nossa
brasilidade, falam de sua portugalidade, uma expressão da afetividade lusa que
não conhecia, criada para designar o gosto e a saudade de tudo quanto pode ser
um retorno ao ontem. O Mercado da Saudade não vende ícones de tristeza. Pelo
contrário. É tanto que seu fundador tem só 34 anos e nada viveu de tão antigo
assim. Mas ele, que é design, percebeu que a saudade portuguesa não é triste. É
alegre e é essa alegria de rever que alimenta seu mercado.
Por isso fui lendo e
compreendendo esse mercado com nome de saudade. Não para vendê-la – a saudade é
algo muito pessoal e intransferível. Mas a saudade como leitmotiv. Como força
de uma inspiração que de repente se traduz num cheiro de um velho perfume ou um
antigo sabonete que na infância perfumava a sala de jantar. Por isso a minha
tabuada vive aqui, exposta a quem desejar revê-la, como era na infância. E da
parede, um dia, as minhas três andorinhas voarão. Como antigamente.
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