sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Serejo: Joel, o marinheiro

Por: Vicente Serejo

 Quando a poesia vinha de outros mundos, não chegava marcada de toda essa fatura e fartura dos habilidosos versejadores, e as metáforas eram fecundadas no útero das palavras, com seus ritos e ritmos, o poema era pleno. Um tempo feito de durezas e branduras, erguidos em versos que assim se estendiam como um varal sob um sol de encantamento. Os marinheiros aceitavam o convite do mar e assim se iam, docemente, sobre o azul. E nem reparavam quanto de vida era preciso ter só para viver.

 Hoje não, Senhor Redator. Nascem no olhar as ervas daninhas do fastio e do desgosto numa sensaboria de pobres sensações. A poesia foi virando um jogo que não é de palavras em gestação, mas de palavras-pedras que remontam frases imitando versos. Raramente cai dentro da gente um verso que de tão inteiro, como um seixo rolado, vai repousar bem no fundo da alma e fica ali, luzindo em certas noites, como um foral a sinalizar aos anjos e demônios navegantes da alma cada instante de revelação.

 Passei anos procurando um dos exemplares dos poemas de Joel Silveira, numerados de um a duzentos, e reunidos num in-fólio de folhas soltas e numeradas, coisa de João Cabral de Melo Neto com o título de ‘O Marinheiro e a Noiva’. Queria ter os poemas de um jornalista que não é um poeta oficial e, no entanto, fala dos mistérios de um mar, pequeno e infinito, como se nele dormissem os temores. E de quem o poeta, em certas noites escuras e tristes, sentia o hálito pobre de deuses abissais.

 Ao encontrá-lo, e aninhá-lo nas mãos, colecionei seus presságios. O que diria um marinheiro-noivo com medo das quilhas batendo contra as trevas escuras de um mar de ausências? E os lábios, tão cândidos e tão úmidos, cais de todos os desejos do poeta-marinheiro? E a sua busca de um azul não morto, como um prado deserto, na dolorosa angústia de estar preso ao chão como mausoléu? E o seu poema cheio de dor quando avisa que é preciso ir, seguir o convite do mar, como se fosse o último?

 Que intensos desejos do poeta de navegar seu mar, mesmo que precise enfrentar sede, frio, uma bússola quebrada, e vendo em cada bandeira a tremular nos mastros um gesto de adeus? O poeta quer ir. Livre como um barco à deriva. E não como um bonde que preso aos mesmos trilhos nunca descobre novas ruas. O poeta não teme sobressaltos e desencantos. Quer o orvalho para envolver o amor terno de Leonor, afinal todas as venturas foram desperdiçadas e a distância engole o sossego dos acalantos.

 Restam Senhor Redator, para desgraça dos homens de almas fracas, como este seu leitor, os poetas estatais. São poetas de raízes apodrecidas no estrume. Tudo – sussurra num aviso quase fúnebre – ficou trivial. E lamenta como numa denúncia surda que todos os tédios tenham amassado os sonhos. O poeta-marinheiro é assim, arrebatado como o mar. Nem sei dizer se ainda encontrou um resto de sol friorento e tranquilo. E se conseguiu realizar o sonho de enviar, de cada porto, um velho cartão postal.

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