Quando a poesia vinha de outros mundos, não chegava marcada
de toda essa fatura e fartura dos habilidosos versejadores, e as metáforas eram
fecundadas no útero das palavras, com seus ritos e ritmos, o poema era pleno.
Um tempo feito de durezas e branduras, erguidos em versos que assim se
estendiam como um varal sob um sol de encantamento. Os marinheiros aceitavam o
convite do mar e assim se iam, docemente, sobre o azul. E nem reparavam quanto
de vida era preciso ter só para viver.
Hoje não, Senhor
Redator. Nascem no olhar as ervas daninhas do fastio e do desgosto numa
sensaboria de pobres sensações. A poesia foi virando um jogo que não é de
palavras em gestação, mas de palavras-pedras que remontam frases imitando
versos. Raramente cai dentro da gente um verso que de tão inteiro, como um
seixo rolado, vai repousar bem no fundo da alma e fica ali, luzindo em certas
noites, como um foral a sinalizar aos anjos e demônios navegantes da alma cada
instante de revelação.
Passei anos procurando
um dos exemplares dos poemas de Joel Silveira, numerados de um a duzentos, e
reunidos num in-fólio de folhas soltas e numeradas, coisa de João Cabral de
Melo Neto com o título de ‘O Marinheiro e a Noiva’. Queria ter os poemas de um
jornalista que não é um poeta oficial e, no entanto, fala dos mistérios de um
mar, pequeno e infinito, como se nele dormissem os temores. E de quem o poeta,
em certas noites escuras e tristes, sentia o hálito pobre de deuses abissais.
Ao encontrá-lo, e
aninhá-lo nas mãos, colecionei seus presságios. O que diria um marinheiro-noivo
com medo das quilhas batendo contra as trevas escuras de um mar de ausências? E
os lábios, tão cândidos e tão úmidos, cais de todos os desejos do poeta-marinheiro?
E a sua busca de um azul não morto, como um prado deserto, na dolorosa angústia
de estar preso ao chão como mausoléu? E o seu poema cheio de dor quando avisa
que é preciso ir, seguir o convite do mar, como se fosse o último?
Que intensos desejos
do poeta de navegar seu mar, mesmo que precise enfrentar sede, frio, uma
bússola quebrada, e vendo em cada bandeira a tremular nos mastros um gesto de
adeus? O poeta quer ir. Livre como um barco à deriva. E não como um bonde que
preso aos mesmos trilhos nunca descobre novas ruas. O poeta não teme
sobressaltos e desencantos. Quer o orvalho para envolver o amor terno de
Leonor, afinal todas as venturas foram desperdiçadas e a distância engole o
sossego dos acalantos.
Restam Senhor Redator,
para desgraça dos homens de almas fracas, como este seu leitor, os poetas
estatais. São poetas de raízes apodrecidas no estrume. Tudo – sussurra num
aviso quase fúnebre – ficou trivial. E lamenta como numa denúncia surda que
todos os tédios tenham amassado os sonhos. O poeta-marinheiro é assim,
arrebatado como o mar. Nem sei dizer se ainda encontrou um resto de sol
friorento e tranquilo. E se conseguiu realizar o sonho de enviar, de cada
porto, um velho cartão postal.
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