Um dia – há quanto tempo, nem sei – numa livraria antiquária
de São Paulo, garimpando livros velhos, puxei um pequeno volume, na prateleira
que reunia os livros de Gilberto Freyre, sem nada impresso no dorso. Olhei a
capa: a Poesia Reunida do autor de Casa Grande & Senzala, edições Pirata,
Recife, 1980. Coisa do poeta Jaci Bezerra que reinventou uma editora para
publicar os poetas do Nordeste e que
conheci numa tarde lírica do Recife antigo, entre copos de cerveja, e de quem
lembro, comovido, da sua Comarca da Memória: “No silêncio cansado do domingo/a
vida dentro do homem renovou-se:/ a dor não resistiu, tornou ao limbo,/e o fel,
embora roxo ficou doce”. Pois bem. Passei a capa e lá estava na folha de rosto,
inacreditável de tão inesperado: ‘Para o ilustre companheiro de estudos Golbery
do Couto e Silva, com um abraço do talvez poeta Gilberto Freyre. Recife, abril,
1980′. Era aquele o milagre dos livros que andam pelo mundo e, em algum lugar,
descansam a espera das mãos que o procuram, como dizia o grande Rubens Borba de
Morais. E para que o registro tenha cheiro e gosto de poesia brasileira,
transcrevo o poema de Gilberto Freyre ‘Bahia de Todos os Santos e de Quase
Todos os Pecados’. Foi publicado originalmente em 1926, numa pequena edição da
Revista do Norte, mas brilhou como novidade quando saiu em O Cruzeiro, em
janeiro de 1942. Quatro anos depois, Gilberto Freyre estava na Antologia de
Poetas Bissextos Contemporâneos, organizada por seu conterrâneo e amigo Manuel
Bandeira, editora Zélio Valverde, Rio, 1946. A poesia gilbertiana virou livro
em 1962 na José Olympio com o título de ‘Quase Poesia’ e prefácio de Mauro
Mota. Uma segunda edição saiu pela Editora Guararapes, aí já com o título de
Poesia Reunida mantido nas edições Pirata, mas agora sem o prefácio de Mauro
Mota. O próprio Gilberto escreve o novo prefácio, datado de Apipucos, 1980, e
pergunta naquele seu jeito cheio de charme:
‘Será mesmo poesia o
que aqui se reúne?’. Para Edson Néry da Fonseca, o poema guarda e revela ao
mesmo tempo a grande influência de Amy Lowell no seu imagismo e de Vachel
Lindsay na sua enumeração caótica. Vai o poema dos santos e dos pecados da
Bahia, saudando o verão nesta primavera, quando já floram os ipês e as
craibeiras no sertão monumental.
Bahia de
Todos os Santos e de Quase Todos os Pecados
Bahia de
Todos os Santos (e de quase todos os pecados)
casas
trepadas umas por cima das outras
casas,
sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num retrato de revista ou
jornal
(vaidade
das vaidades! Diz o Eclesiastes)
igrejas
gordas (as de Pernambuco são mais magras)
toda a
Bahia é uma maternal cidade gorda
como se
dos ventres empinados dos seus montes
dos quais
saíram tantas cidades do Brasil
inda
outras estivessem para sair
ar mole
oleoso
cheiro de
comida
cheiro de
incenso
cheiro de
mulata
bafos
quentes de sacristias e cozinhas
panelas
fervendo
temperos
ardendo
o
Santíssimo Sacramento se elevando
mulheres
parindo
cheiro de
alfazema
remédios
contra sífilis
letreiros
como este:
Louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo
(Para
sempre! Amém!)
automóveis
a 30$ a hora
e um ford
todo osso sobe qualquer ladeira
saltando
pulando tilintando
pra depois
escorrer sobre o asfalto novo
que
branqueja como dentadura postiça em terra encarnada
(a terra
encarnada de 1500)
gente da
Bahia! Preta, parda, roxa, morena
cor dos
bons jacarandás de engenho do Brasil
(madeira
que cupim não rói)
sem rostos
cor de fiambre
nem corpos
cor de peru frio
Bahia de
cores quentes, carnes morenas, gostos picantes
eu detesto
teus oradores, Bahia de Todos os Santos
teus
ruisbarbosas, teus otaviosmangabeiras
mas gosto
das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus
tabuleiros,
flor de papel, candeeirinhos,
tudo à
sombra das tuas igrejas
todas
cheias de anjinhos bochechudos
sãojões
sãojosés meninozinhosdeus
e com
senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que eu
O padre
reprimido que há em mim
se exalta
diante de ti Bahia
e perdoa
tuas superstições
teu
comércio de medidas de Nossa Senhora e de Nossossenhores do Bonfim
e vê no
ventre dos teus montes e das tuas mulheres
conservadores
da fé uma vez entregue aos santos
multiplicadores
de cidades cristãs e de criaturas de Deus
Bahia de
Todos os Santos
Salvador
São
Salvador
Bahia
Negras
velhas da Bahia
vendendo
mingau angu acarajé
Negras
velhas de xale encarnado
peitos
caídos
mães das
mulatas mais belas dos Brasis
mulatas de
gordo peito em bico como pra dar de mamar a todos os meninos do Brasil.
Mulatas de
mãos quase de anjos
mãos
agradando ioiôs
criando
grandes sinhôs quase iguais aos do Império
penteando
iaiás
dando
cafuné nas sinhás
enfeitando
tabuleiros cabelos santos anjos
lavando o
chão de Nosso Senhor do Bonfim
pés
dançando nus nas chinelas sem meia
cabeções
enfeitados de rendas
estrelas
marinhas de prata
tetéias de
ouro
balangandãs
presentes
de português
óleo de
coco
azeite-de-dendê
Bahia
Salvador
São
Salvador
Todos os
Santos
Tomé de
Sousa
Tomés de
Sousa
padres,
negros, caboclos
Mulatas
quadrarunas octorunas
a Primeira
Missa
os malês
índias
nuas
vergonhas
raspadas
candomblés
santidades heresias sodomias
quase
todos os pecados
ranger de
camas-de-vento
corpos
ardendo suando de gozo
Todos os
Santos
missa das
seis
comunhão
gênios de
Sergipe
bacharéis
de pince-nez
literatos
que lêem Menotti del Picchia e Mário Pinto Serpa
mulatos de
fala fina
muleques
capoeiras
feiticeiras
chapéus-do-chile
Rua Chile
viva J. J.
Seabra morra J. J. Seabra
Bahia
Salvador
São
Salvador
Todos os
Santos
um dia
voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro
às tuas
igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades ruivos e bons
aos teus
tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)
a tuas
casas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema cacau.
Nenhum comentário:
Postar um comentário