segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Serejo: Golbery, Gilberto e a poesia

Por: Vicente Serejo

Um dia – há quanto tempo, nem sei – numa livraria antiquária de São Paulo, garimpando livros velhos, puxei um pequeno volume, na prateleira que reunia os livros de Gilberto Freyre, sem nada impresso no dorso. Olhei a capa: a Poesia Reunida do autor de Casa Grande & Senzala, edições Pirata, Recife, 1980. Coisa do poeta Jaci Bezerra que reinventou uma editora para publicar os  poetas do Nordeste e que conheci numa tarde lírica do Recife antigo, entre copos de cerveja, e de quem lembro, comovido, da sua Comarca da Memória: “No silêncio cansado do domingo/a vida dentro do homem renovou-se:/ a dor não resistiu, tornou ao limbo,/e o fel, embora roxo ficou doce”. Pois bem. Passei a capa e lá estava na folha de rosto, inacreditável de tão inesperado: ‘Para o ilustre companheiro de estudos Golbery do Couto e Silva, com um abraço do talvez poeta Gilberto Freyre. Recife, abril, 1980′. Era aquele o milagre dos livros que andam pelo mundo e, em algum lugar, descansam a espera das mãos que o procuram, como dizia o grande Rubens Borba de Morais. E para que o registro tenha cheiro e gosto de poesia brasileira, transcrevo o poema de Gilberto Freyre ‘Bahia de Todos os Santos e de Quase Todos os Pecados’. Foi publicado originalmente em 1926, numa pequena edição da Revista do Norte, mas brilhou como novidade quando saiu em O Cruzeiro, em janeiro de 1942. Quatro anos depois, Gilberto Freyre estava na Antologia de Poetas Bissextos Contemporâneos, organizada por seu conterrâneo e amigo Manuel Bandeira, editora Zélio Valverde, Rio, 1946. A poesia gilbertiana virou livro em 1962 na José Olympio com o título de ‘Quase Poesia’ e prefácio de Mauro Mota. Uma segunda edição saiu pela Editora Guararapes, aí já com o título de Poesia Reunida mantido nas edições Pirata, mas agora sem o prefácio de Mauro Mota. O próprio Gilberto escreve o novo prefácio, datado de Apipucos, 1980, e pergunta naquele seu jeito cheio de charme:

 ‘Será mesmo poesia o que aqui se reúne?’. Para Edson Néry da Fonseca, o poema guarda e revela ao mesmo tempo a grande influência de Amy Lowell no seu imagismo e de Vachel Lindsay na sua enumeração caótica. Vai o poema dos santos e dos pecados da Bahia, saudando o verão nesta primavera, quando já floram os ipês e as craibeiras no sertão monumental.

 

Bahia de Todos os Santos e de Quase Todos os Pecados

 

 

 

Bahia de Todos os Santos (e de quase todos os pecados)

casas trepadas umas por cima das outras

casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num retrato de revista ou jornal

(vaidade das vaidades! Diz o Eclesiastes)

igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras)

toda a Bahia é uma maternal cidade gorda

como se dos ventres empinados dos seus montes

dos quais saíram tantas cidades do Brasil

inda outras estivessem para sair

ar mole oleoso

cheiro de comida

cheiro de incenso

cheiro de mulata

bafos quentes de sacristias e cozinhas

panelas fervendo

temperos ardendo

o Santíssimo Sacramento se elevando

mulheres parindo

cheiro de alfazema

remédios contra sífilis

letreiros como este:

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo

(Para sempre! Amém!)

automóveis a 30$ a hora

e um ford todo osso sobe qualquer ladeira

saltando pulando tilintando

pra depois escorrer sobre o asfalto novo

que branqueja como dentadura postiça em terra encarnada

(a terra encarnada de 1500)

gente da Bahia! Preta, parda, roxa, morena

cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil

(madeira que cupim não rói)

sem rostos cor de fiambre

nem corpos cor de peru frio

Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes

eu detesto teus oradores, Bahia de Todos os Santos

teus ruisbarbosas, teus otaviosmangabeiras

mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus

tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,

tudo à sombra das tuas igrejas

todas cheias de anjinhos bochechudos

sãojões sãojosés meninozinhosdeus

e com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que eu

O padre reprimido que há em mim

se exalta diante de ti Bahia

e perdoa tuas superstições

teu comércio de medidas de Nossa Senhora e de Nossossenhores do Bonfim

e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres

conservadores da fé uma vez entregue aos santos

multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de Deus

Bahia de Todos os Santos

Salvador

São Salvador

Bahia

Negras velhas da Bahia

vendendo mingau angu acarajé

Negras velhas de xale encarnado

peitos caídos

mães das mulatas mais belas dos Brasis

mulatas de gordo peito em bico como pra dar de mamar a todos os meninos do Brasil.

Mulatas de mãos quase de anjos

mãos agradando ioiôs

criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império

penteando iaiás

dando cafuné nas sinhás

enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos

lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim

pés dançando nus nas chinelas sem meia

cabeções enfeitados de rendas

estrelas marinhas de prata

tetéias de ouro

balangandãs

presentes de português

óleo de coco

azeite-de-dendê

Bahia

Salvador

São Salvador

Todos os Santos

Tomé de Sousa

Tomés de Sousa

padres, negros, caboclos

Mulatas quadrarunas octorunas

a Primeira Missa

os malês

índias nuas

vergonhas raspadas

candomblés santidades heresias sodomias

quase todos os pecados

ranger de camas-de-vento

corpos ardendo suando de gozo

Todos os Santos

missa das seis

comunhão

gênios de Sergipe

bacharéis de pince-nez

literatos que lêem Menotti del Picchia e Mário Pinto Serpa

mulatos de fala fina

muleques

capoeiras feiticeiras

chapéus-do-chile

Rua Chile

viva J. J. Seabra morra J. J. Seabra

Bahia

Salvador

São Salvador

Todos os Santos

um dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro

às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades ruivos e bons

aos teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)

a tuas casas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema cacau.

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