Por: Vicente
Serejo
Quem, um dia, teve aquelas veleidades acadêmicas e
acreditou que o método era a chave que abria a porta de todos os saberes, não
imaginou que a aventura maior é viver e fazer da vida a arte de colecionar
descobertas. Foi a minha reação, Senhor Redator, olhando a cobertura das
televisões sobre a morte, o velório e o enterro de Hebe Camargo. Mais do que
cumprir a ordem de fatos, foi o rito de adeus de quem há mais de cinquenta anos
foi a vizinha, a comadre, a amiga e a madrinha do Brasil.
Uso a expressão madrinha por ser íntima de quem
viveu naqueles inícios dos anos setenta a descobrir, nos corredores
universitários, a nova ciência da comunicação. Até hoje tenho, rabiscado, a edição
original – Perspectiva, São Paulo, 1972 – de A Noite da Madrinha, o primeiro
grande estudo acadêmico sobre Hebe Camargo. Foi há quarenta anos, ainda na sua
primeira década de atuação que Sérgio Micele – hoje um estudioso consagrado –
já percebia ali um processo ideológico de iconização.
Ao contrário dos pássaros nas migalhas da história
de João e Maria, os ratos do tempo não comeram os rabiscos que desenham, nas
linhas do texto, o mapa de uma velha leitura tão esquecida. Vejo à página 17
meu grifo a lápis grafite que assinala: ‘O programa Hebe Camargo, escolhido
para uma análise de caso mais detida, subsiste há mais de uma década, em
horários ‘nobres’, escorando-se no carisma doce de sua animadora’. É a
tessitura de uma história comum que une Hebe à sua platéia.
Miceli, há quarenta anos – há uma segunda edição
recente – foi ousado, daí a leitura naqueles cursos de extensão. Foi
inteligente e inovadora a percepção, lastreando com a teoria da comunicação o
que chamou de ‘pacto afetivo’, unindo a apresentadora e o seu público. Para
ele, um pacto capaz de alimentar a semelhança dos ‘estereótipos em que se
alicerça a figura pública da animadora’ e que assim sustenta ‘demandas
simbólicas de uma classe’ até para avivar a história comum entre os dois.
Silvio Santos e Hebe Camargo foram os ícones – pai
e mãe – da forte tradição brasileira de programas de auditório. Intenso
processo de comunicação que manteve vivo no sentimento popular, até pela
semelhança das origens sociais com as suas plateias – extratos perfeitos como
representações do povo brasileiro. Viraram ícones do ideal de uma vida melhor,
como milagres da alegria saídos das portas da esperança e seus baús cheios da
felicidade, com Silvio a perguntar: Quem quer dinheiro?
Naquele tempo, ainda morno das inquietações dos anos sessenta, as
dissertações de mestrado inauguravam entre nós o olhar brasileiro sobre nossas
próprias cenas e cenários. Era a percepção da indústria cultural nos primeiros
passos sobre o território simbólico do País do Carnaval, para usar a força
expressiva e definidora de Jorge Amado. Da alegria tropical afloraram as
questões ideológicas, nascendo do fundo do mato dentro, como em Macunaíma,
outro Brasil até então era imperceptível
Nenhum comentário:
Postar um comentário