quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Serejo: A força da madrinha


Por: Vicente Serejo

Quem, um dia, teve aquelas veleidades acadêmicas e acreditou que o método era a chave que abria a porta de todos os saberes, não imaginou que a aventura maior é viver e fazer da vida a arte de colecionar descobertas. Foi a minha reação, Senhor Redator, olhando a cobertura das televisões sobre a morte, o velório e o enterro de Hebe Camargo. Mais do que cumprir a ordem de fatos, foi o rito de adeus de quem há mais de cinquenta anos foi a vizinha, a comadre, a amiga e a madrinha do Brasil.

Uso a expressão madrinha por ser íntima de quem viveu naqueles inícios dos anos setenta a descobrir, nos corredores universitários, a nova ciência da comunicação. Até hoje tenho, rabiscado, a edição original – Perspectiva, São Paulo, 1972 – de A Noite da Madrinha, o primeiro grande estudo acadêmico sobre Hebe Camargo. Foi há quarenta anos, ainda na sua primeira década de atuação que Sérgio Micele – hoje um estudioso consagrado – já percebia ali um processo ideológico de iconização.

Ao contrário dos pássaros nas migalhas da história de João e Maria, os ratos do tempo não comeram os rabiscos que desenham, nas linhas do texto, o mapa de uma velha leitura tão esquecida. Vejo à página 17 meu grifo a lápis grafite que assinala: ‘O programa Hebe Camargo, escolhido para uma análise de caso mais detida, subsiste há mais de uma década, em horários ‘nobres’, escorando-se no carisma doce de sua animadora’. É a tessitura de uma história comum que une Hebe à sua platéia.

Miceli, há quarenta anos – há uma segunda edição recente – foi ousado, daí a leitura naqueles cursos de extensão. Foi inteligente e inovadora a percepção, lastreando com a teoria da comunicação o que chamou de ‘pacto afetivo’, unindo a apresentadora e o seu público. Para ele, um pacto capaz de alimentar a semelhança dos ‘estereótipos em que se alicerça a figura pública da animadora’ e que assim sustenta ‘demandas simbólicas de uma classe’ até para avivar a história comum entre os dois.

Silvio Santos e Hebe Camargo foram os ícones – pai e mãe – da forte tradição brasileira de programas de auditório. Intenso processo de comunicação que manteve vivo no sentimento popular, até pela semelhança das origens sociais com as suas plateias – extratos perfeitos como representações do povo brasileiro. Viraram ícones do ideal de uma vida melhor, como milagres da alegria saídos das portas da esperança e seus baús cheios da felicidade, com Silvio a perguntar: Quem quer dinheiro?

Naquele tempo, ainda morno das inquietações dos anos sessenta, as dissertações de mestrado inauguravam entre nós o olhar brasileiro sobre nossas próprias cenas e cenários. Era a percepção da indústria cultural nos primeiros passos sobre o território simbólico do País do Carnaval, para usar a força expressiva e definidora de Jorge Amado. Da alegria tropical afloraram as questões ideológicas, nascendo do fundo do mato dentro, como em Macunaíma, outro Brasil até então era imperceptível

 

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