segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Serejo: Desertão, saartão, sertão…

Por: Vicente Serejo

Andando esses dias, Senhor Redator, pelo sertão mundo afora, levando na bruaca enfeitada com arte de pregaria a fortuna das palavras de gente importante como Felipe Guerra, Eloy de Souza, Câmara Cascudo, Juvenal e Oswaldo Lamartine – fachos luminosos do sertão à luz das lamparinas feito – olhei o mato esturricado, e pensei cá comigo: a estética da civilização sertaneja é a caatinga seca. No inverno, os verdes se parecem. Na fartura, a paisagem épica cede lugar ao dionisíaco. Tudo é festa para os olhos.

Foi ali, na secura daquele mundo sem brandura e sem amavio que floresceu a sociedade rude dos vaqueiros, no dizer bonito de Euclydes da Cunha. Longe da civilização do açúcar, de senhores de engenho aristocráticos, ricos de escravos pobres de tudo. O compadrio não nasce entre dominadores e dominados. Ao contrário do sertão, onde o senhor de terras e de gados divide a cria dos bezerros com os seus vaqueiros, é padrinho dos seus filhos e, juntos, seja na seca ou no inverno, dividem a vida e a lida.

Nem citei nas minhas conversas com os alunos do Sesc, sempre tão atenciosos e que encontrei naqueles vastos auditórios, a Conferência de Lajes que Eloy de Souza fez para tão poucos ouvidos e passou anos perdida. Foi Vingt-Un Rosado que um dia encontrou nos guardados de um sertanejo velho e zeloso do que ouvira no tempo de moço. Não falei do alvoroço do seu coração, mas contei lembranças antigas de Juvenal Lamartine puxando o fio da memória dos velhos costumes do seu grande sertão.

Como foi bom repetir a belíssima e lúdica descrição de Câmara Cascudo a projetar no plano infantil os traços e costumes da tradição na vida real. A imaginação recriando no quintal da infância o sertão do menino: dos bois de osso, dos açudes feitos com cacos de louça, da água escorrendo nas valas abertas a unha. Um sertão em miniatura, mas, na repetição mágica de cada gesto, o concerto maquinal de um mundo real, embora vivido num sopro de vida que reinventa, alegoricamente, o tempo morto.

Olhando aquela gente ouvindo cada palavra num silêncio monástico fiquei convencido da velha certeza que tantas vezes aprendi com Oswaldo Lamartine: há qualquer coisa de bíblico no sertão. Na pastoral dos seus lajedos. Na solidão das suas pedras. Na tristeza dos bichos no cantochão do aboio a apascentar os rebanhos. Um rio cheio é um deslumbramento, avisa Câmara Cascudo. E o açude, no sono das suas águas mansas quando acorda no quebrar da barra para repetir, a cada dia, o milagre da criação.

Seja como for, é um mundo inteiro que vive ali encantado naqueles mundos de lonjura e solidão, feitos de abandono, mas espiados por olhos que ninguém vê. Mundo que nasce e morre a cada inverno e a cada seca. Morre até que as primeiras chuvas acordem no seu chão velho a babugem que dormia e que volta para reinaugurar nos homens e nos bichos a alegria da vida. Sertão vazio, perdido entre caminhos sem ninguém, e que um dia se levanta depois do sono das horas sem vida. Desertão, saartão, sertão…

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