sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Serejo: Cascudo e Hobsbawm

Por: Vicente Serejo

 Ninguém, com caminhadas mesmo ligeiras no grande e rico continente intelectual de Câmara Cascudo deixa de perceber a vastidão do grande leitor, o que tornou possível realizar uma obra além dos limites do apenas comum. Fez parte da geração brilhante e ousada que repetiu as entradas e bandeiras para fundar o século de suas próprias descobertas, fixando os traços definitivos da identidade cultural brasileira. Nova tomada de posse e domínio de um território que ainda pertencia ao olhar dos viajantes.

 Sua erudição o fez semeador em vários campos do saber, mas não o isentou de ausências teóricas que só se justificariam por desinteresse pontual e circunstancial e nunca por desconhecimento. Daí, o alto preço que pagou já na fase mais ideológica da vida intelectual acadêmica, quando a crítica universitária confinou num calabouço que chamaria de comentaristas impressionistas todas as visões sociológicas ou antropológicas dos que não explicavam os fatos sociais sob a ótica da luta de classes.

 Na verdade, se de um lado o olhar canhestro da academia tapou com a má vontade um ângulo que não poderia ter desconhecido – é tanto que hoje a obra cascudiana é das mais bem estudadas pela crítica universitária – de outro, inegavelmente, suas raízes aristocráticas fecundaram sua alma daquele forte sabor monarquista e conservador que o fez biógrafo do Conde D’Eu, e tão vaidoso do prefácio que mereceu do conde Afonso Celso, e também um biógrafo entusiasta da figura do Marquês de Olinda.

 Talvez por isso seu olhar, embora erudito, não tenha enxergado Manoel Bomfim quando bem no início do século, em 1906, espantou a aristocracia intelectual brasileira com seu livro sobre a ‘América Latina, males de origem’ que décadas depois, no seu exílio, tanto deixaria impressionado Darcy Ribeiro a ponto de escrever o prefácio consagrador da segunda edição. Manoel Bomfim, o rebelde esquecido que viveu seus últimos anos num sanatório, como o identificou seu biógrafo Ronaldo Conde Aguiar.

 A visão conservadora vai se revelar, também, pelas raízes de um pai coronel da Guarda Nacional e caçador de cangaceiro. Um vezo aristocrático de intolerância fica claramente exposto no verbete que escreve sobre Lampião no seu grandioso e até hoje insuperável Dicionário do Folclore Brasileiro. Sua adjetivação copiosa – frio, violento, cruel, sanguinário, incendiário e estuprador, para citar alguns – acabaria afastando o seu olhar da questão do banditismo social que o cangaço também protagonizaria.

 Deve ter sido o vezo, mesmo autêntico e nascido de suas origens aristocráticas, o que não o fez merecedor de um elogio do historiador marxista Eric Hobsbawm em ‘Rebeldes Sociais’, apontado como um dos maiores estudos sobre as ‘formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX’, e que no Brasil teve duas traduções lançadas pela Zahar, e também no seu ensaio ‘Bandidos’ que olha como símbolos nascidos de uma matriz – Robin Hood – o bom ladrão que tirava dos ricos para dar aos pobres.

 Além de Euclides da Cunha que para o grande Eric Hobsbawm soube compreender a luta social, vale à pena lembrar a homenagem que faz no prefácio para a edição brasileira de ‘Rebeldes Primitivos’, ao citar a obra de Maria Isaura Pereira Queiroz sobre o cangaço e seus bandidos sociais. Registra a sua ‘admiração pelo valioso trabalho’ e lamenta que ‘alguns dos seus livros, como ‘Os Cangaceiros’, tenham sido publicados demasiadamente tarde para que tivessem sido usados nesta edição’, escreve.

 Mas, é preciso ter cuidado. Se as raízes da herança familiar moldaram a fixação de presenças e ausências, afeições e desafeições, marcas naturais do homem, a riqueza e a vastidão de sua obra estão acima desses detalhes. Foi com seu olhar atento que contou a história, ainda em 1941, há 71 anos, dos ‘Revoltosos da Serra de João do Vale’. Com uma introdução que recenseia as lutas sociais no Nordeste, de Canudos à Pedra do Reino, até os sonhos loucos do beato Joaquim Ramalho e seus fiéis, em 1898. E que começa como uma velha fábula: ‘Peço licença para contar uma história que nunca foi contada…

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