Ninguém, com
caminhadas mesmo ligeiras no grande e rico continente intelectual de Câmara
Cascudo deixa de perceber a vastidão do grande leitor, o que tornou possível
realizar uma obra além dos limites do apenas comum. Fez parte da geração
brilhante e ousada que repetiu as entradas e bandeiras para fundar o século de
suas próprias descobertas, fixando os traços definitivos da identidade cultural
brasileira. Nova tomada de posse e domínio de um território que ainda pertencia
ao olhar dos viajantes.
Sua erudição o fez
semeador em vários campos do saber, mas não o isentou de ausências teóricas que
só se justificariam por desinteresse pontual e circunstancial e nunca por
desconhecimento. Daí, o alto preço que pagou já na fase mais ideológica da vida
intelectual acadêmica, quando a crítica universitária confinou num calabouço
que chamaria de comentaristas impressionistas todas as visões sociológicas ou
antropológicas dos que não explicavam os fatos sociais sob a ótica da luta de
classes.
Na verdade, se de um
lado o olhar canhestro da academia tapou com a má vontade um ângulo que não
poderia ter desconhecido – é tanto que hoje a obra cascudiana é das mais bem
estudadas pela crítica universitária – de outro, inegavelmente, suas raízes
aristocráticas fecundaram sua alma daquele forte sabor monarquista e
conservador que o fez biógrafo do Conde D’Eu, e tão vaidoso do prefácio que
mereceu do conde Afonso Celso, e também um biógrafo entusiasta da figura do
Marquês de Olinda.
Talvez por isso seu
olhar, embora erudito, não tenha enxergado Manoel Bomfim quando bem no início
do século, em 1906, espantou a aristocracia intelectual brasileira com seu
livro sobre a ‘América Latina, males de origem’ que décadas depois, no seu exílio,
tanto deixaria impressionado Darcy Ribeiro a ponto de escrever o prefácio
consagrador da segunda edição. Manoel Bomfim, o rebelde esquecido que viveu
seus últimos anos num sanatório, como o identificou seu biógrafo Ronaldo Conde
Aguiar.
A visão conservadora
vai se revelar, também, pelas raízes de um pai coronel da Guarda Nacional e
caçador de cangaceiro. Um vezo aristocrático de intolerância fica claramente
exposto no verbete que escreve sobre Lampião no seu grandioso e até hoje
insuperável Dicionário do Folclore Brasileiro. Sua adjetivação copiosa – frio,
violento, cruel, sanguinário, incendiário e estuprador, para citar alguns –
acabaria afastando o seu olhar da questão do banditismo social que o cangaço
também protagonizaria.
Deve ter sido o vezo,
mesmo autêntico e nascido de suas origens aristocráticas, o que não o fez
merecedor de um elogio do historiador marxista Eric Hobsbawm em ‘Rebeldes
Sociais’, apontado como um dos maiores estudos sobre as ‘formas arcaicas de
movimentos sociais nos séculos XIX e XX’, e que no Brasil teve duas traduções
lançadas pela Zahar, e também no seu ensaio ‘Bandidos’ que olha como símbolos
nascidos de uma matriz – Robin Hood – o bom ladrão que tirava dos ricos para
dar aos pobres.
Além de Euclides da
Cunha que para o grande Eric Hobsbawm soube compreender a luta social, vale à
pena lembrar a homenagem que faz no prefácio para a edição brasileira de
‘Rebeldes Primitivos’, ao citar a obra de Maria Isaura Pereira Queiroz sobre o
cangaço e seus bandidos sociais. Registra a sua ‘admiração pelo valioso
trabalho’ e lamenta que ‘alguns dos seus livros, como ‘Os Cangaceiros’, tenham
sido publicados demasiadamente tarde para que tivessem sido usados nesta
edição’, escreve.
Mas, é preciso ter
cuidado. Se as raízes da herança familiar moldaram a fixação de presenças e
ausências, afeições e desafeições, marcas naturais do homem, a riqueza e a
vastidão de sua obra estão acima desses detalhes. Foi com seu olhar atento que
contou a história, ainda em 1941, há 71 anos, dos ‘Revoltosos da Serra de João
do Vale’. Com uma introdução que recenseia as lutas sociais no Nordeste, de
Canudos à Pedra do Reino, até os sonhos loucos do beato Joaquim Ramalho e seus
fiéis, em 1898. E que começa como uma velha fábula: ‘Peço licença para contar uma
história que nunca foi contada…
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