sábado, 3 de novembro de 2012

Serejo: Ah, um Maverick!


Por: Vicente Serejo

Os desafetos vão dizer que é inveja. Sempre dizem. Quando o nível de civilização é muito baixo é fácil compreender que inveja e despeito sejam as escapatórias dos ricos que, mesmo sendo, não sabem ser. Mas, Deus, na sua misericórdia, sabe que não. É puro desejo, mesmo estranho, afinal não dirijo bem e não sou de curtir automóveis. Fujo das corridas de Fórmula I. Os seus zumbidos iniciam, antes da noite chegar, com aquela musiquinha do Fantástico, a trilha sonora da angústia nos dias de domingo.

 Não invejo nada nem a ninguém, Senhor Redator. A não ser Umberto Eco com suas bibliotecas particulares em três ou quatro lugares do mundo onde passa temporadas. Mas a foto saltou do jornal e se enfiou bem nos caroços dos olhos: aquele Maverick verde, novinho em folha. Foi na crônica de Ivan Finotti, nos classificados da Folha, domingo. Ele compara modelos antigos, como o Corcel II, igual ao que foi do seu pai, à madeleine de Proust que faz a gente ter a sensação de recuperar o tempo perdido.

 O primeiro Maverick que vi de perto, na calçada da casa de Djair Dantas, em Nova Dimensão, foi do médico Djacir Dantas, seu irmão e meu amigo. Ele acabava de chegar do Rio, da sua residência médica. Era amarelo, se a memória não faz mais uma das suas. Visto a certa distância, assim do meio da rua, parecia um Mustang. De silhueta delgada, duas portas, capota rebaixada, vidros estreitos que pareciam esconder um pouco o motorista. E uma frente que se alongava, numa elegância impecável.

 Nunca tive um Maverick. Nem compraria hoje, mesmo que hoje pudesse tê-lo, para fazer o que ainda há de bom nesta cidade que é passear de carro nas calmas manhãs e tardes de domingo. Nem por isso, deixei de admirá-lo como invenção do homem. Tão mágico como aquele Karmann Ghia vermelho de Augusto Severo Neto. Fui seu vizinho, e de Lúcia Beltrão, no Edifício Manairama, ali quase esquina com o castelo de Alfredo Pegado, o Conde de Miramontes, com suas ameias voltadas para os morros.

 Frustrante Senhor Redator é nunca ter dado um passeio de Maverick e de Karmann Ghia. E devo mesmo confessar: adiantaria muito pouco. É quase nenhum o estoque de fantasia nesta alma sessentona que hoje já se encanta outra vez com os velhos caminhos. Só seria capaz de ter um Maverick se fosse para um adeus à mocidade que dobrou a esquina para nunca mais voltar. Carregando um tempo imenso de vida. De pequenas histórias anônimas e esquecidas que a ninguém interessa contar, ouvir ou viver.

 Uma coisa ninguém pode contestar na crônica de Ivan Finotti, por mais que se queira acusá-lo de infantilidade no seu sonho realizado de ter um Maverick: o prazer de passear nas tardes de domingo. Não importa se o IPI baixou para o carro novo. O que ele procura é o tempo perdido. Como a madeleine de Proust. Tudo é assim – objetos, cheiros, gostos. É como um longo braço a procurar dentro da alma da gente, no sótão escuro e empoeirado da nossa infância, as lembranças que um dia nos ajudaram a viver.

 

 

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