Por: Vicente Serejo
Os desafetos vão dizer que é inveja. Sempre dizem. Quando o
nível de civilização é muito baixo é fácil compreender que inveja e despeito
sejam as escapatórias dos ricos que, mesmo sendo, não sabem ser. Mas, Deus, na
sua misericórdia, sabe que não. É puro desejo, mesmo estranho, afinal não
dirijo bem e não sou de curtir automóveis. Fujo das corridas de Fórmula I. Os
seus zumbidos iniciam, antes da noite chegar, com aquela musiquinha do
Fantástico, a trilha sonora da angústia nos dias de domingo.
Não invejo nada nem a
ninguém, Senhor Redator. A não ser Umberto Eco com suas bibliotecas
particulares em três ou quatro lugares do mundo onde passa temporadas. Mas a
foto saltou do jornal e se enfiou bem nos caroços dos olhos: aquele Maverick
verde, novinho em folha. Foi na crônica de Ivan Finotti, nos classificados da
Folha, domingo. Ele compara modelos antigos, como o Corcel II, igual ao que foi
do seu pai, à madeleine de Proust que faz a gente ter a sensação de recuperar o
tempo perdido.
O primeiro Maverick
que vi de perto, na calçada da casa de Djair Dantas, em Nova Dimensão, foi do
médico Djacir Dantas, seu irmão e meu amigo. Ele acabava de chegar do Rio, da
sua residência médica. Era amarelo, se a memória não faz mais uma das suas.
Visto a certa distância, assim do meio da rua, parecia um Mustang. De silhueta
delgada, duas portas, capota rebaixada, vidros estreitos que pareciam esconder
um pouco o motorista. E uma frente que se alongava, numa elegância impecável.
Nunca tive um
Maverick. Nem compraria hoje, mesmo que hoje pudesse tê-lo, para fazer o que
ainda há de bom nesta cidade que é passear de carro nas calmas manhãs e tardes
de domingo. Nem por isso, deixei de admirá-lo como invenção do homem. Tão
mágico como aquele Karmann Ghia vermelho de Augusto Severo Neto. Fui seu
vizinho, e de Lúcia Beltrão, no Edifício Manairama, ali quase esquina com o
castelo de Alfredo Pegado, o Conde de Miramontes, com suas ameias voltadas para
os morros.
Frustrante Senhor
Redator é nunca ter dado um passeio de Maverick e de Karmann Ghia. E devo mesmo
confessar: adiantaria muito pouco. É quase nenhum o estoque de fantasia nesta
alma sessentona que hoje já se encanta outra vez com os velhos caminhos. Só
seria capaz de ter um Maverick se fosse para um adeus à mocidade que dobrou a
esquina para nunca mais voltar. Carregando um tempo imenso de vida. De pequenas
histórias anônimas e esquecidas que a ninguém interessa contar, ouvir ou viver.
Uma coisa ninguém pode
contestar na crônica de Ivan Finotti, por mais que se queira acusá-lo de
infantilidade no seu sonho realizado de ter um Maverick: o prazer de passear
nas tardes de domingo. Não importa se o IPI baixou para o carro novo. O que ele
procura é o tempo perdido. Como a madeleine de Proust. Tudo é assim – objetos,
cheiros, gostos. É como um longo braço a procurar dentro da alma da gente, no
sótão escuro e empoeirado da nossa infância, as lembranças que um dia nos
ajudaram a viver.
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