domingo, 11 de novembro de 2012

Lima: Cinco coisas

Jairo Lima

  MEU PRIMEIRO ASSASSINO.

 Conheci meu primeiro assassino aí pelos nove, dez anos, isto é, antes eu já o conhecia, mas ele ainda não era assassino, e por conhecer não quero dizer que tínhamos alguma intimidade, ou que sequer nos falássemos, mas como deixar de conhecer alguém em Arcoverde, cidade pequena, magra e comprida afundada entre serras cinzentas, como não conhecer, dizia, nem que fosse só de vista até porque eu, menino sambudo, nem sonhasse de  ser amigo de um cabra com mais de trinta anos, sério, gordo, amarelado, que trabalhava na loja de disco do pai, se ocupando do mais sublime dos afazeres, de vender rumbas, boleros e fox-trotes e sambas na mais pacata das cidades, mais admiraria até, se alguém pudesse ver naquelas mãos que botavam os discos pra girar no prato, ou naquela voz suave e abaritonada que dizia a senhora quer levar ou o senhor já ouviu este, chegou ontem, quem diria que esta mão e esta voz se levantaria contra uma moça pacata, enfermeira, morena, baixinha, crente, médium vidente, sossegada, que vivia do seu suor?

Mas, coisa do destino, a moça recatada apaixonou-se pelo aveludado barítono e com ele foi-se aos matos.

Passou-se. Um dia formou-se uma pequena multidão num terreno baldio ao lado da minha casa. Saímos a ver em que dava aquela milacria e nos juntamos ao grupo que espiava o relento.

E aí, do meio do escuro,  do vento, da poeira, lá vem dois soldados trazendo meu assassino, a cara gorda avermelhada, as mãos manchadas de sangue, os olhos esbugalhados, o cabelo assanhado, passando por mim sem me ver, sem ver ninguém. Esta noite custei a dormir, com medo de alma. Ficava parado, olhando os caibros no teto, escutando o vento. Até que madornei, sonhei com uma lua redonda, ensanguentada, senti frio embaixo dos cobertores e me mijei.  Acordei no escuro, triste e molhado.

DEUS E DONA LIQUINHA

 A história com dona Liquinha se passa no circo, numa noite, e na missa, na manhã seguinte.  Dona Liquinha, ora, era uma santa, católica e apostólica beata, gordota, cara de lua cheia, olhos bovinos, bondosos, mortiços, um tanto assustados e estava no circo, onde também estava eu, ela na frente, no camarote com o marido, eu lá atrás, no poleiro, quase de frente pra ela e aí, depois do palhaço e da rumbeira,  veio o mágico.  E disse a que veio. Com gestos largos, volteando com graça quase feminina as mãos ossudas, puxou um coelho da cartola puída e descorada.

Olhei pro mágico, olhei pro coelho, olhei pra Liquinha.  E vi em seus olhos o transe,  o êxtase, turíbulos, incenso,  rosa mística, speculum justitia, causa nostrae laetitiae, ora pro nobis. Amem.

No dia seguinte, na missa, o padre transforma o pão e o vinho no corpo e sangue de Cristo. Liquinha nada. Lá, parada, na dela, balbuciando de qualquer jeito uma reza insossa, mãos postas com desmazelo, olhos entediados. Eu, do lado de fora da igreja, no vão da porta que dava para o altar, comparava : quedê olhos brilhantes e esbugalhados, quedê o sorriso doce, beatificado, quedê os langores do céu? O coelho do mágico se entronizara no coração de Liquinha, correndo com o cristo do padre.  Liquinha matara deus. Era meu segundo assassinato.

 

INTERMEZZO

 Depois que Liquinha matou deus tudo no mundo perdeu a alma. Mas eu peguei meus amigos e soprei neles uma alma inventada.  Vá lá que não eram almas de mermo. Vá lá que não assombram, nem viram almas penadas. Foi o que pude fazer. Não é nem presente, é só uma lembrancinha. Mas, em caso de morte, sempre dá pra ser usada.

 
INVARIAVELMENTE

 Em Arcoverde os meninos estudavam no colégio do padre, o Ginásio Cardeal Arcoverde. As meninas frequentavam o colégio das freiras, o Imaculada Conceição.

No domingo, nos juntávamos para a missa dos estudantes.

A gente, de terno azul marinho de tropical, suávamos sob o sol formando em fila na frente da igreja, vigiados pelo padre. As meninas, em pelotão  também formadas, exibiam seus trajes de gala sob a vigilância feroz das freiras.

Entrávamos na igreja. A gente ocupava os bancos da direita e as meninas os da esquerda, no mais absoluto silêncio. A missa começava.

La pras tantas, as meninas salmodiavam:

Cristo vence, Cristo reina,

Cristo impera sublime aclamação...

Nisso, os moleques lá de trás entoavam, em contraponto, o refrão:

Acla-ma-ção!

O padre espumava de raiva. No sermão, invariavelmente, nos chamava de canalhas. Exigia respeito, falava do cristo, da cruz, do sofrimento, da pureza de uma vida santa e regrada.

Depois, se embeiçou de  uma menina do colégio das freiras e se casou.

 
ORDÁLIA*

 Meu último assassino era um  professional respeitado, com muitas mortes nas costas, amigo da rua, compadre de minha prima Ivone, alí em pé, na salinha, mostrando cicatrizes de bala pelo corpo e se gabando de estar vivo por intercessão dos santos e poder de deus.

E os que tu matou?

Admirou-se.  Cumade, quem sou eu pra decidir causa de vida ou morte de um vivente?  Falar verdade,  só apertei o gatilho.  Quem matou foi deus.

 *Ordália é um tipo de prova judiciária usado para determinar a culpa ou a inocência do acusado cujo resultado é interpretado como um juízo divino. Também é conhecido como juízo de Deus (judicium Dei, em latim).As práticas mais comuns da ordália são as que envolvem submeter o acusado a uma prova dolorosa. Se a prova é concluída sem ferimentos ou se as feridas são rapidamente curadas, o acusado é considerado inocente. Na Europa medieval, este tipo de procedimento fundava-se na premissa de que Deus protegeria o inocente, por meio de um milagre que o livraria do mal causado pela prova.

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