MEU PRIMEIRO ASSASSINO.
Conheci meu primeiro assassino aí
pelos nove, dez anos, isto é, antes eu já o conhecia, mas ele ainda não era
assassino, e por conhecer não quero dizer que tínhamos alguma intimidade, ou
que sequer nos falássemos, mas como deixar de conhecer alguém em Arcoverde,
cidade pequena, magra e comprida afundada entre serras cinzentas, como não
conhecer, dizia, nem que fosse só de vista até porque eu, menino sambudo, nem
sonhasse de ser amigo de um cabra com
mais de trinta anos, sério, gordo, amarelado, que trabalhava na loja de disco
do pai, se ocupando do mais sublime dos afazeres, de vender rumbas, boleros e
fox-trotes e sambas na mais pacata das cidades, mais admiraria até, se alguém
pudesse ver naquelas mãos que botavam os discos pra girar no prato, ou naquela voz
suave e abaritonada que dizia a senhora quer levar ou o senhor já ouviu este,
chegou ontem, quem diria que esta mão e esta voz se levantaria contra uma moça
pacata, enfermeira, morena, baixinha, crente, médium vidente, sossegada, que
vivia do seu suor?
Mas, coisa do destino, a moça
recatada apaixonou-se pelo aveludado barítono e com ele foi-se aos matos.
Passou-se. Um dia formou-se uma
pequena multidão num terreno baldio ao lado da minha casa. Saímos a ver em que
dava aquela milacria e nos juntamos ao grupo que espiava o relento.
E aí, do meio do escuro, do vento, da poeira, lá vem dois soldados
trazendo meu assassino, a cara gorda avermelhada, as mãos manchadas de sangue,
os olhos esbugalhados, o cabelo assanhado, passando por mim sem me ver, sem ver
ninguém. Esta noite custei a dormir, com medo de alma. Ficava parado, olhando
os caibros no teto, escutando o vento. Até que madornei, sonhei com uma lua
redonda, ensanguentada, senti frio embaixo dos cobertores e me mijei. Acordei no escuro, triste e molhado.
DEUS E DONA LIQUINHA
A história com dona Liquinha se passa no
circo, numa noite, e na missa, na manhã seguinte. Dona Liquinha, ora, era uma santa, católica e
apostólica beata, gordota, cara de lua cheia, olhos bovinos, bondosos,
mortiços, um tanto assustados e estava no circo, onde também estava eu, ela na
frente, no camarote com o marido, eu lá atrás, no poleiro, quase de frente pra
ela e aí, depois do palhaço e da rumbeira,
veio o mágico. E disse a que
veio. Com gestos largos, volteando com graça quase feminina as mãos ossudas,
puxou um coelho da cartola puída e descorada.
Olhei pro mágico, olhei pro
coelho, olhei pra Liquinha. E vi em seus
olhos o transe, o êxtase, turíbulos,
incenso, rosa mística, speculum
justitia, causa nostrae laetitiae, ora pro nobis. Amem.
No dia seguinte, na missa, o
padre transforma o pão e o vinho no corpo e sangue de Cristo. Liquinha nada.
Lá, parada, na dela, balbuciando de qualquer jeito uma reza insossa, mãos
postas com desmazelo, olhos entediados. Eu, do lado de fora da igreja, no vão
da porta que dava para o altar, comparava : quedê olhos brilhantes e
esbugalhados, quedê o sorriso doce, beatificado, quedê os langores do céu? O
coelho do mágico se entronizara no coração de Liquinha, correndo com o cristo
do padre. Liquinha matara deus. Era meu
segundo assassinato.
INTERMEZZO
Depois que Liquinha matou deus
tudo no mundo perdeu a alma. Mas eu peguei meus amigos e soprei neles uma alma
inventada. Vá lá que não eram almas de
mermo. Vá lá que não assombram, nem viram almas penadas. Foi o que pude fazer.
Não é nem presente, é só uma lembrancinha. Mas, em caso de morte, sempre dá pra
ser usada.
INVARIAVELMENTE
Em Arcoverde os meninos estudavam
no colégio do padre, o Ginásio Cardeal Arcoverde. As meninas frequentavam o
colégio das freiras, o Imaculada Conceição.
No domingo, nos juntávamos para a
missa dos estudantes.
A gente, de terno azul marinho de
tropical, suávamos sob o sol formando em fila na frente da igreja, vigiados
pelo padre. As meninas, em pelotão também
formadas, exibiam seus trajes de gala sob a vigilância feroz das freiras.
Entrávamos na igreja. A gente
ocupava os bancos da direita e as meninas os da esquerda, no mais absoluto
silêncio. A missa começava.
La pras tantas, as meninas
salmodiavam:
Cristo vence, Cristo reina,
Cristo impera sublime
aclamação...
Nisso, os moleques lá de trás
entoavam, em contraponto, o refrão:
Acla-ma-ção!
O padre espumava de raiva. No
sermão, invariavelmente, nos chamava de canalhas. Exigia respeito, falava do
cristo, da cruz, do sofrimento, da pureza de uma vida santa e regrada.
Depois, se embeiçou de uma menina do colégio das freiras e se casou.
ORDÁLIA*
Meu último assassino era um professional respeitado, com muitas mortes
nas costas, amigo da rua, compadre de minha prima Ivone, alí em pé, na salinha,
mostrando cicatrizes de bala pelo corpo e se gabando de estar vivo por
intercessão dos santos e poder de deus.
E os que tu matou?
Admirou-se. Cumade, quem sou eu pra decidir causa de vida
ou morte de um vivente? Falar
verdade, só apertei o gatilho. Quem matou foi deus.
*Ordália é um tipo de prova
judiciária usado para determinar a culpa ou a inocência do acusado cujo
resultado é interpretado como um juízo divino. Também é conhecido como juízo de
Deus (judicium Dei, em latim).As práticas mais comuns da ordália são as que
envolvem submeter o acusado a uma prova dolorosa. Se a prova é concluída sem
ferimentos ou se as feridas são rapidamente curadas, o acusado é considerado
inocente. Na Europa medieval, este tipo de procedimento fundava-se na premissa
de que Deus protegeria o inocente, por meio de um milagre que o livraria do mal
causado pela prova.
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