terça-feira, 6 de novembro de 2012

Brasil: Virgindade de meninas índias vale R$ 20 no AM

KÁTIA BRASIL

ENVIADA ESPECIAL A SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM)

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 Polícia Federal investiga casos de exploração sexual de adolescentes indígenas

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Doze meninas prestaram depoimento à polícia em São Gabriel da Cachoeira; ex-vereador, comerciantes e militares são suspeitos

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No município amazonense de São Gabriel da Cachoeira, na fronteira do Brasil com a Colômbia, um homem branco compra a virgindade de uma menina indígena com aparelho de celular, R$ 20, peça de roupa de marca e até com uma caixa de bombons.

 A pedido das mães das vítimas, a Polícia Civil apura o caso há um ano. No entanto, como nenhum suspeito foi preso até agora, a Polícia Federal entrou na investigação no mês passado.

 Doze meninas já prestaram depoimento. Elas relataram aos policiais que foram exploradas sexualmente e indicaram nove homens como os autores do crime.

 Entre eles há empresários do comércio local, um ex-vereador, dois militares do Exército e um motorista.

 As vítimas são garotas das etnias tariana, uanana, tucano e baré que vivem na periferia de São Gabriel da Cachoeira, que tem 90% da população (cerca de 38 mil pessoas) formada por índios.

 Entre as meninas exploradas, há as que foram ameadas pelos suspeitos. Algumas foram obrigadas a se mudar para casas de familiares, na esperança de ficarem seguras.

 A Folha conversou com cinco dessas meninas e, para cada uma delas, criou iniciais fictícias para dificultar a identificação na cidade.

 M., de 12 anos, conta que "vendeu" a virgindade para um ex-vereado. O acerto, afirma a menina, ocorreu por meio de uma prima dela, que também é adolescente.

 "Ele me levou para o quarto e tirou minha roupa. Foi a primeira vez, fiquei triste."

 A menina conta que o homem é casado e tem filhos. "Ele me deu R$ 20 e disse para eu não contar a ninguém."

 P., de 14 anos, afirma que esteve duas vezes com um comerciante. "Ele me obrigou. Depois me deu um celular."

 Já L., de 12 anos, diz que ela e outras meninas ganharam chocolates, dinheiro e roupas de marca em troca da virgindade. "Na primeira vez fui obrigada, ele me deu R$ 30 e uma caixa com chocolates."

 DEZ ANOS

 Outra garota, X., de 15 anos, disse que presenciou encontros de sete homens com meninas de até dez anos.

 "Eu vi meninas passando aquela situação, ficando com as coxas doloridas. Eles sempre dão dinheiro em troca disso [da virgindade]."

 P. aceitou depor na PF porque recebeu ameaças de um dos suspeitos. "Ele falou que, se continuasse denunciando, eu iria junto com ele para a cadeia. Estou com medo, ele fez isso com muitas meninas menores", afirma.

 Familiares e conselheiros tutelares que defendem as adolescentes também são ameaçados. "Eles avisaram: se abrirem a boca a gente vai mandar matar", diz a mãe de uma menina de 12 anos.

Frase

"Ele me levou para o quarto e tirou minha roupa. Foi a primeira vez, fiquei triste"

"Ele me deu R$ 20 e disse para eu não contar a ninguém"
M., de 12 anos

 Sexo por bombom

Casos de exploração sexual de garotas indígenas são denunciados desde 2008 em São Gabriel do Cachoeira, no Amazonas

DA ENVIADA A SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM)

A situação das meninas indígenas exploradas sexualmente é conhecida como um caso de impunidade na isolada São Gabriel da Cachoeira.

Na Polícia Civil, três inquéritos foram abertos, mas nenhum dos nove suspeitos foi preso nem indiciado.

O delegado titular da cidade, Normando da Barbosa, afirma que pediu a prisão de um suspeito, mas ele fugiu da cidade. Os demais nunca prestaram depoimento.

Os crimes de estupro de vulnerável e exploração sexual têm penas previstas de quatro a dez anos de reclusão.

A irmã Giustina Zanato, 63, presidente do Conselho Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente, diz que os casos são denunciados desde 2008.

"Fomos procurar a Justiça. Lá disseram que deveríamos ficar quietinhos no nosso lugar, que isso acontecia todos os dias", afirma Giustina.

Promotora de Justiça de São Gabriel, Christina Dolzany diz que ouviu depoimentos de dez meninas. "É uma coisa animalesca e triste, algumas delas relatam que perderam a virgindade nessa situação de exploração."

Algumas meninas, segundo Christina, já estão recebendo assistência psicológica.

O procurador federal Júlio José Araújo Junior, que atua no direito indígena, determinou a abertura de inquérito.

"A investigação pela PF se deve muito pela insatisfação da sociedade com as investigações que não andaram [na Polícia Civil]. Os acusados são pessoas que têm certo poder dentro da cidade, o que intimida qualquer tipo de denúncia", disse o procurador.

O delegado titular em São Gabriel atribui a morosidade da investigação à dificuldade de encontrar as garotas. "Passamos 30 dias para localizar quatro meninas. Apenas uma delas fez o exame de corpo de delito para comprovar a conjunção carnal. Assim fica difícil, elas mesmo dificultam."

CABEÇA DO CACHORRO

São Gabriel da Cachoeira fica no Alto Rio Negro, região rica em minérios que abriga a maior população indígena no Brasil. São 22 etnias, daí 90% da população ser formada por índios, incluindo o prefeito e o vice-prefeito do município.

A região, também conhecida como Cabeça do Cachorro, é estratégica para as Forças Armadas do Brasil, pois é alvo do tráfico de drogas e de incursões de guerrilheiros.

Em muitas aldeias não há escolas e opções de sustento o que leva as famílias à cidade. Lá, encontram a exclusão.

Os brancos formam a elite, em sua maioria funcionários públicos e militares. Os índios sobrevivem com ajuda de programas sociais e moram em casebres de chão de terra batida e sem água encanada.

O alcoolismo e o suicídio entre eles são o maior drama social local.

(KÁTIA BRASIL)

 Frases

"Fomos procurar a Justiça. Lá nos disseram que deveríamos ficar quietinhos no nosso lugar, que isso acontecia todos os dias"
GIUSTINA ZANATO, 63
presidente do Conselho Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente, que afirma que desde 2008 existem denúncias de abuso sexual contra meninas indígenas

"Os acusados têm certo poder na cidade, o que intimida qualquer tipo de denúncia"

JOSÉ ARAÚJO JUNIOR

procurador federal

"Passamos 30 dias para localizar quatro meninas"

NORMANDO DA BARBOSA

delegado titular

 


Versão local de Dorothy Stang, irmã Giustina vira referência

Religiosa italiana acolhe as meninas e cobra polícia

DA ENVIADA A SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM)

A italiana Giustina Zanato, 63, é para as meninas indígenas uma espécie de versão amazonense de Dorothy Stang, missionária assassinada no Pará em 2005 e que dedicou parte de sua vida à defesa dos camponeses.

Natural de Marostica, província de Vicenza, chegou ao Brasil em outubro de 1984.

Ligada à Congregação das Irmãs Salesianas, da Igreja Católica, já enfrentou embates com pessoas do Judiciário e da polícia cobrando a punição dos suspeitos de abusar das meninas da região.

"Denúncias foram feitas, mas não vimos o resultado. É muito triste pensar que quem se colocou ao lado da Justiça é injusto", diz a missionária.

Desde 2008, a religiosa coordena o programa assistencial "Menina Feliz", que atende vítimas de violência sexual e abandono.

Lá, as menores são abrigadas, recebem alimentação, educação e podem fazer cursos de artesanato, costura e também de informática.

AMEAÇAS

A missionária diz que familiares de duas dessas 12 meninas exploradas sexualmente se interessaram pelo dinheiro dos suspeitos."São famílias desestruturadas, o dinheiro se tornou uma segurança."

Irmã Giustina prestou depoimento no inquérito da Polícia Federal e diz que não temer as ameaças.

"Eu ando na cidade toda e não tenho medo. Sei que estou fazendo o meu papel como religiosa, como alguém que se sente parte da família indígena e que me acolheu tão bem no Brasil."

Ela afirma que já teve vontade de se encontrar frente a frente com os homens suspeitos de comprar a virgindade das meninas da cidade.(K.B.)

 Frase

"Já tive vontade de encará-los, mas sinto nojo; é um crime que deveria ser combatido com todas as forças"

IRMÃ GIUSTINA

religiosa que protege as adolescentes


 

 

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