terça-feira, 20 de novembro de 2012

Toni Tornado: BR 3


Dia Nacional da Consciência Negra


Por Matilde Ribeiro

“A luta pela liberdade dos negros brasileiros jamais cessou. Em 1971, um significativo capítulo de nossa história vinha à tona pela ação de homens e mulheres do Grupo Palmares. Lá do Rio Grande do Sul era revelada a data do assassinato de Zumbi, um dos ícones da República de Palmares. Passados sete anos, ativistas negros reunidos em congresso do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial cunharam o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra. Em 1978, era dado o passo que tornaria Zumbi dos Palmares um herói nacional, vinculado diretamente à resistência do povo negro.

Herdamos os propósitos de Luiza Mahin, Ganga Zumba e legiões de homens e mulheres negras que se rebelaram a um sistema de opressão. Lançaram mão de suas vidas a se conformarem com a prisão física e de pensamento. Contrapuseram-se ante às tentativas de aniquilamento de seus valores africanos e contribuíram com seus saberes para a fundação e o progresso do Brasil.

Orgulhosamente, exaltamos nossa origem africana e referendamos a unidade de luta pela liberdade de informação, manifestação religiosa e cultural. Buscamos maior participação e cidadania para os afro-brasileiros e nos associamos a outros grupos para dizer não ao racismo, à discriminação e ao preconceito racial.

Que este 20 de Novembro, assim como todos os outros, seja de muita festividade, alegria e renove nossas energias para continuarmos nossa trajetória para conquista de direitos e igualdade de oportunidades. Estejamos todos, homens e mulheres negras, irmanados nesta caminhada pela liberdade e pela consciência da riqueza da diversidade racial!”

Matilde Ribeiro

 Ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

Zumbi dos Palmares

 “A cada novo 20 de novembro, Zumbi se espraia, amplia o seu território na consciência nacional, empurra para os subterrâneos da história seus algozes, que foram travestidos de heróis"

Sueli Carneiro

Quando tudo aconteceu...

1600: Negros fugidos ao trabalho escravo nos engenhos de açúcar de Pernambuco, fundam na serra da Barriga o quilombo de Palmares; a população não pára de aumentar, chegarão a ser 30 mil; para os escravos, Palmares é a Terra da Promissão. - 1630: Os holandeses invadem o Nordeste brasileiro. - 1644: Tal como antes falharam os portugueses, os holandeses falham a tentativa de aniquilar o quilombo de Palmares. - 1654: Os portugueses expulsam os holandeses do Nordeste brasileiro. - 1655: Nasce Zumbi, num dos mocambos de Palmares - 1662 (?): Criança ainda, Zumbi é aprisionado por soldados e dado ao padre António Melo; será baptizado com o nome de Francisco, irá ajudar à missa e estudar português e latim. - 1670: Zumbi foge, regressa a Palmares. - 1675: Na luta contra os soldados portugueses comandados pelo Sargento-mor Manuel Lopes, Zumbi revela-se grande guerreiro e organizador militar. - 1678: A Pedro de Almeida, Governador da capitania de Pernambuco, mais interessa a submissão do que a destruição de Palmares; ao chefe Ganga Zumba propõe a paz e a alforria para todos os quilombolas; Ganga Zumba aceita; Zumbi é contra, não admite que uns negros sejam libertos e outros continuem escravos. - 1680: Zumbi impera em Palmares e comanda a resistência contra as tropas portuguesas. - 1694: Apoiados pela artilharia, Domingos Jorge Velho e Vieira de Mello comandam o ataque final contra a Cerca do Macaco, principal mocambo de Palmares; embora ferido, Zumbi consegue fugir. - 1695, 20 de Novembro: Denunciado por um antigo companheiro, Zumbi é localizado, preso e degolado.

Fernando Correia da Silva

Serejo: O homem e seu lugar

Data: 25 outubro 2012 - Hora: 18:01 - Por: Vicente Serejo

 Ormuz Barbalho Simonetti lança hoje, início da noite, na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras suas memórias sobre os hábitos, costumes e tradições da praia de Pipa no tempo de seus avós. Por isso transcrevo o prefácio que escrevi para o seu livro que é também um registro documental e visual dos traços culturais de um lugar que foi uma vila e hoje é o maior e mais internacional balneário turístico do Rio Grande do Norte.

 Lendo uma vez um ensaio do professor Milton Santos, o grande erudito baiano, já desaparecido, e que nos ensinou as melhores lições sobre a geografia humana – no sentido de fixar o homem e seus espaços – bati os olhos numa inesperada citação de Winston Churchill que dizia assim: “Primeiro construímos nossas casas; depois são elas que nos constroem”.

 Hoje, vejo não ser muito diferente da noção de lugar. Nós também construímos os espaços de vivência e, depois, esses espaços nos constroem. É tanto, que as pessoas do interior costumam se referir ao seu território de origem – cidade, vila ou povoado – com a expressão “meu lugar”.

 Foi o que senti lendo este livro sobre a história da Pipa, a praia dos avós de Ormuz, nosso maior genealogista. Primo, não apenas pelas leis do bem-querer, e já seria bastante, mas, também, pelas velhas raízes Barbalho Simonetti, família da minha avó Edith, personagem humilde da genealogia que ele pesquisou para ser a própria História da origem e dos caminhos da nossa gente.

 Porque este A praia da Pipa do Tempo dos meus avós conta a História de um lugar antigo que a família de Ormuz escolheu para vencer o calor dos verões. E, se escolheu, é suficiente o pioneirismo para fazê-la descobridora do lugar. Descoberta no sentido de escolha. Eles foram inventores de um espaço vivencial que hoje, com as narrativas de Ormuz, é recriado, como se fosse possível inventar um céu, o Céu da Pipa, e nele soprar vida em todos os personagens de sua história humana. Humana, porque vai além de sua toponímia, da história remota ou recente dos seus lugares, da vida de seus personagens, na austeridade de uns ou na simplicidade de outros.

 Ormuz foi capaz de remontar o mosaico das recordações, mas sem a pretensão de escrever uma história formal. Talvez, e sem querer, uma pequena história, mas bem no modelo dos franceses quando ensinaram que é preciso não esquecer de olhar a nova história no seu cotidiano – sem reis, sem heróis e sem mártires.

 Partindo de um coloquialismo que assume desde o título, afinal é a história de um lugar onde viveram seus avós, Ormuz Barbalho Simonetti foi um bom caçador de datas, fatos e nomes. Capaz de não perdê-los de vista, e de reuni-los numa moldura de histórias humanas sem as quais a própria História da Pipa não teria ido além de uma historiografia. Revelada num conjunto de artigos e crônicas nascidos nas páginas de um jornal, e aqui reunidos buscando a perenidade do livro.

 Talvez este corte proustiano, no qual renasce a memória da infância no seu rol de lembranças confessadas, tenha mesmo a função de derramar sobre os olhos dos leitores o mel da saudade. Faz sentido. A memória é a forma de salvar um lugar da sua mundialização, conceito que uniformiza, sem seus traços únicos, todos os espaços do Homem. Só o imaginário pode preservar sua unicidade e singularidade físicas e humanas, como se vencesse o desmonte que o tempo sabe engendrar.

 E Ormuz é cuidadoso no seu jeito de olhar e anotar. Vai, capítulo a capítulo, registrando tudo como se nada pudesse ser esquecido. Em cada lance de olhar, um retrato detalhado da sua visão cheia de saudade. Das velhas viagens abrindo caminhos, os primeiros veranistas, o desenho mágico de hábitos, costumes e tradições. Salva do esquecimento, como se tirasse do rescaldo das lembranças, os traços fundamentais de veranistas e nativos, gente de uma vila que se fez com um povo do mar.

 É livro que nasce lentamente e surge docemente, como a água fresca das cacimbas, refletindo no espelho mágico as lembranças de um tempo imenso de vida. Como se repetissem, num milagre de transição, os versos de Camões quando fala da dor das coisas que passaram.

 Mas, Ormuz também ergue a cabeça, alonga seu olhar e se transmuda. É um biólogo a registrar a fauna marinha. Um botânico a contar a vida de suas árvores. Um ouvinte a guardar o canto dos pássaros da sua infância. Numa verdadeira cartografia sentimental, os seus textos são também desenhos mapeando lembranças. Dos pescadores, das velhas rendeiras com os bilros pulando nas mãos, dos tiradores de coco, dos carpinteiros navais.

 É como se Ormuz Barbalho Simonetti, num gesto profundamente humano, fizesse do seu livro sobre a Praia da Pipa uma nova Arca de Noé. E nela pudesse levar personagens, peixes, árvores, bichos e pássaros do seu lugar para a grande ilha da memória. E, assim, salvá-los do dilúvio do esquecimento.

Serejo: lição

Lição

Data: 23 outubro 2012 - Hora: 18:00 - Por: Vicente Serejo

 Tenho sustentado aqui, Senhor Redator, a despeito dos muxoxos e resmungos dos intolerantes, que nesta Aldeia Velha já não temos elites. No máximo, e se muito, um tanto de ricos e um pouco de muito ricos. E se a solidão, como no bolero, não apavora, é bom que de vez em quando venham cair nos olhos outros olhares. De preferência, que não sejam de mestres e doutores do óbvio, mas feitos da sensibilidade indispensável dos que, mesmo vitoriosos no mercado, nem assim deixam de enxergar.

 Falo do olhar de Nizan Guanaes, um dos mais vitoriosos do grande mercado da publicidade e hoje um nome internacional com agência em Nova Iorque, detentor de algumas das maiores contas publicitárias do mundo. E ele escreveu na Folha de S. Paulo – sempre às terças-feiras, na última página do caderno Mercado – agora para avisar a quem queira saber: ‘Depois da nova classe média, este país precisa de uma nova classe alta’. E acrescenta convicto: ‘O Brasil moderno exigirá uma nova elite’.

 O pior, Senhor Redator: não são os olhares burros que renegam a verdade. São os reacionários de toda espécie, mas, sobretudo, os tardios. Enriquecidos nas últimas décadas e de riquezas nascidas da especulação ou de consórcios com as burras do Estado. É neles que floresce a reação contra o exercício da crítica, como se todo questionamento minasse da vertente da inveja, quando não do despeito ou até da frustração pessoal, traço medonho que marca a visão canhestra dos que se julgam inquestionáveis.

 Como escreve Nizan, não se trata de desrespeitar ninguém com generalizações, mas é sempre bom não esquecer que a mazela do dinheiro – se é que há alguma doença na riqueza – é esquecer as velhas lições do saber popular que vem do fundo da noite e dos tempos, como aquela do ‘pai que funda e o filho afunda’. Ou, aquela outra que embora prosaica na sua pobre literatice, bem explica a sucessão da vida quando se foi um neto rico, um filho próspero e alegre, para no fim ser apenas um velho pobre.

 Para Nizan, é muito difícil acreditar no futuro de uma nação sem elites bem formadas, ‘dividida por preconceitos e ódios’. E tem razão: nem a sanha contra os ricos como acontece na França de hoje, nem o Brasil tal como ainda é, pois mesmo reconstruído nas bases sociais e econômicas ‘por um líder sindical e uma economista vítima da ditadura’, nem assim não pode se preparar para viver seu instante maior sem formar elites para conduzi-lo no mundo sempre competitivo e a exigir eficiência absoluta.

 Nizan reclama de uma classe rica brasileira que teima em deixar suas crianças crescendo nos shoppings apenas ‘consumindo loucamente sem ter desafios e sonhos que transcendam um abdome de tanquinho e o próximo modelo de iPhone’. Para ele, rico e bom educador dos seus filhos, formar assim é ‘falta de amor com ela – a criança – e falta de responsabilidade com o país’. Ou seja: ninguém com toda a riqueza do mundo forma elites num shopping, na disputa de carrões e na competição de grifes.

 E sua constatação foi real. Ele acabou de levar um dos seus filhos para um teste de admissão em duas escolas Americanas e lá encontrou muitos pais chineses e indianos, e nenhum pai brasileiro. E ele escreve irônico: ‘O português tão ouvido nas lojas de Nova Iorque e Miami é bem menos ouvido na Harvard que eu e meu Antônio visitamos’. Uma lâmina a cortar a carne da vulgaridade, ele completa: ‘Se você é brasileiro e quer ter um caso secreto em Nova Iorque, leve sua morada para uma biblioteca’.

 E conta a visita que fez ao muitas vezes milionário Bill Gates em sua casa: ‘Me emocionei andando pela biblioteca dele. Estão lá os mais importantes livros da civilização humana nas suas primeiras edições. E é óbvio que o dono daquela biblioteca vai dividi-la com o mundo quando não estiver mais nele’. E acrescenta, assumindo um tom conceitual e sem temer a intolerância dos que são apenas muito ricos e tolos: ‘Ser rico é um privilégio, um direito e também uma responsabilidade’.

 E resume, num parágrafo, sua história: ‘Meu pai, que era médico, foi para a Inglaterra com bolsa de estudos do governo e me levou para aprender inglês, conhecer o mundo e não ter medo dele. Meu avô Demócrito Mansur de Carvalho, líder sindical comunista, ensinou-me a amar Castro Alves. Minha mãe a amar Pablo Neruda e Machado de Assis’. E conclui: ‘Já a classe alta tem motivos tão nobres quanto, embora nem sempre tão evidentes: liderar essa transformação com valores includentes, iluministas e brasileiros’. Enquanto isso, os nossos ricos aqui na aldeia, arrotam, arrostam, arremedam.

domingo, 18 de novembro de 2012

Vídeo: Clementina de Jesus


Serejo: A Odisséia de Dorian

Data: 17 novembro 2012 - Hora: 18:03 - Por: Vicente Serejo

 Ao prefaciar a edição brasileira do Dicionário de Mitos Literários, de Pierre Brunel, até hoje considerado um monumento do olhar francês sobre a mitologia, Nicolau Sevcenko confessa que o poema Ulisses, de Fernando Pessoa, foi uma iluminação reveladora do mito, uma força fixadora da realidade. E por isso a literatura é a lira do homem moderno a cada instante de suas reinvenções.

 O êxtase de Sevcenko se estende no olhar de Dorian Gray Caldas sobre o mito, mas sem fazer de cada ensaio só a narrativa de um leitor apaixonado. Talvez se repita nesta que também é uma viagem mágica, aquele instante de grande visão de Blanchot ao perceber que a vitória de Ulisses não foi resistir ao amavio do canto das sereias, mas fundir sua voz à própria voz de Homero.

 Aqui, como na Odisséia, não importa saber o destino das sereias. Talvez seja verdadeira a notícia de que elas tenham caído no mar. Importa perceber o papel de Dorian, como um Ulisses, que não deseja substituir a Homero, mas viaja com a mesma força narrativa inaugural, a desenhar com a sua palavra poética, novas e fundadoras leituras sobre um velho imaginário que parecia esgotado.

Na sua visão mítica, Dorian se deixa amarrar ao mastro do seu barco porque também não é prisioneiro de certezas. De ouvidos abertos, procura nas grandes vozes do mundo o caminho para compreender o novo. E, como Todorov, sabe que o canto das sereias, essa alegoria do sublime, morre de silêncio para a vida surgir, assim como a literatura só nasce com a morte do apenas real.

 Como é bonito acompanhar Dorian Gray na visão metafísica de Leonardo da Vinci, não para imitá-lo na técnica, mas para fazer sua parte no sonho humano e reconhecer no homem sua alma de pássaro. De anjo, águia ou condor. Na tessitura dos entrelaçamentos com os ícones mais modernos, como o Super-Homem que Dorian olha como um sinal de Nietzsche – tão dionisíaco e tão apolíneo, entre a paisagem exuberante e a pobre solidão do homem na sua espera angustiada de ser Deus.
É instigante seguir seu olho perscrutador, enfiar-se no próprio olho e sair olhando com ele, ao mesmo tempo e numa sensação de simultaneidade absoluta – as sombras e as luzes do desenho de Hundertwasser. Talvez uma outra forma de entrelaçamento, aquela de Adorno ao vislumbrar no canto das sereias – para ouvi-lo mais uma vez – o mítico e o racional na busca do esclarecimento.

 Diante deste livro que nasce como verdadeiro monumento da ensaística do Rio Grande do Norte, a sensação é a de ouvir as grandes vozes do silêncio, para usar a belíssima expressão de André Malraux. De cada poema, quadro, escultura. Da vida anoitecida pelo tempo. Vozes ouvidas e às vezes arrancadas, sem temer o silêncio que para Kafka foi a maior arma das sereias.

 Em Dorian, principalmente neste livro, a técnica e a arte do ensaio se entrelaçam de forma definitiva e magistral. Sem prender o olhar ao esquadro de modelos, como há de fazer um grande escultor. A erguer, na harmonia e na aparente contradição das formas, a grandeza que para os outros é o inesperado. Como Picasso diante de Guernica, Dorian entrelaça na sua arquitetura ensaística os arabescos do bem e do mal, do crime e da esperança, do grotesco e do sublime. Para depois voltar ao seu mar antigo. Como um Ulisses.

Ainda que seja apenas o velho e mesmo mar, inesgotável e surpreendente, que um dia inaugurou em seu espírito o grande destino de criador de mundos.

 Eis aqui este criador, embriagado de palavras, cores e formas, a revelar o milagre da criação.

 Natal, 2011, quando ardem as fogueiras de São João.

 Vicente Serejo

Serejo: Publicidade e preconceito

Data: 22 outubro 2012 - Hora: 18:06 - Por: Vicente Serejo

 Tem horas que a gente tem que passar a bola. É a hora do passe. Fiquei fascinado com a questão do filme publicitário do colégio CEI Mirassol. Um tema fascinante, mas acabei convencido de que não faria melhor do que o professor Alysson Freire. Não pelo erro que aponta – essa é uma opinião, mas não é a única – mas por seu olhar sobre a questão. Opinião que esta coluna transcreve em nome da pluralidade das ideias, afinal o debate na área da comunicação e da publicidade não se pode mais não esconder o enfrentamento nas sombras da intolerância.

 Assim como a nossa fala pode por vezes nos trair e revelar aquilo que de forma alguma confessaríamos abertamente, também as imagens revelam sem que se dê conta o que de fato pensamos sobre o mundo, ainda que a intenção e o objetivo tenham sido radicalmente outros. Isto porque as imagens condensam crenças, significados, visões de mundo, etc.. Por isso que, às vezes, uma imagem pode valer mais do que mil palavras.

 Foi exatamente nesta “armadilha das imagens” em que incorreu a campanha publicitária do Colégio CEI Mirassol, elaborada pela empresa Criola. A propaganda exibe uma sessão de ultrasonografia onde os pais, cheios de orgulho e planos, especulam e imaginam a futura profissão do filho. Os desejos e expectativas dos pais sobre o “que o filhinho vai ser quando crescer”, se médico, juiz ou engenheiro, são intercalados com imagens depreciativas de outras ocupações, digamos, menos prestigiadas; “pai-de-santo”, juiz de futebol e palhaço.

 A cada expectativa e profissão imaginada pelos pais corresponde uma outra ocupação e futuro em que se vai do sonho à frustração, do sucesso ao fracasso, do orgulho à vergonha, do prestígio social e status à condição de menosprezado.

 O ser médico, engenheiro ou juiz servem como metáforas para definir o que é um futuro e uma pessoa de sucesso e prestígio ao passo que “macumbeiro”, palhaço e juiz de futebol servem para definir as marcas do fracasso, da vergonha e do desprestígio social. De um lado, os notáveis e exitosos, de outro, a ralé.

 Assim, o médico, símbolo máximo da credibilidade e da ciência é contrastado com um desacreditado e mediúnico “pai-de-santo” – num claro estigma e desrespeito a outras crenças religiosas; o engenheiro, símbolo da sisudez dos cálculos tem o seu oposto no palhaço sem graça; e, por último, o juiz de direito, figura que exprime o ápice da autoridade e do respeito possui como o seu avesso, o contestável juiz de futebol, alvo máximo do desrespeito alheio e de todas as torcidas. As oposições entre as profissões exprimem, na verdade, oposições morais; credibilidade/incredibilidade, respeito/desrespeito, sucesso/fracasso. Essas oposições morais definem o valor das profissões, e, por consequência, o valor das próprias pessoas.

 Ao final, a propaganda encerra com uma frase que mais parece uma contundente chantagem: “não basta sonhar com o futuro do seu filho, é preciso fazer a escolha certa”. Ou seja, o “futuro certo” e a “profissão certa” para que seu filho possa ser “gente” dependem da escolha pela “Escola Certa”, isto é, aquela que garante atingir a expectativa da santíssima trindade médico-engenheiro-juiz; do contrário, aos pais restaria não apenas ter de se contentar com sonho, mas com a possibilidade real de vivenciar o fracasso, a frustração e a vergonha.

 A propaganda não é apenas preconceituosa e ofensiva, mas reveladora das hierarquias sociais e morais que estão depositadas na maneira como as classes médias altas brasileiras enxergam e dividem o mundo e as pessoas. Ele revela, portanto, o preconceito profundo em que se sustenta a visão de mundo dessas camadas, fundamentado particularmente na ideia da existência de ocupações e atividades superiores e mais importantes, que brindam reconhecimento e distinção social, em contraposição àquelas avaliadas como inferiores e menos importantes, marcadas pelo menosprezo e desrespeito. Eis aí a medida com a qual cada um será avaliado como alguém de sucesso e significativo para a sociedade ou simplesmente como um “fracassado”, “inútil” e “invisível”.

 É bem verdade que não foi o CEI que produziu o vídeo. Porém, sua aprovação expressa mais do que uma infelicidade: exprime a aceitação e reconhecimento da escola do conteúdo e das mensagens contidas, ainda que ela não tenha se dado conta dessas dimensões mais latentes. Muitos podem se surpreender e lamentar que uma instituição de educação admita ou deixe passar despercebido tais alusões preconceituosas e estigmatizadoras. Mas, de modo algum, isso é uma surpresa.

 Afinal, conforme sustenta o sociólogo Jessé Souza, numa sociedade que consente e naturaliza a produção e classificação de “gente” e cidadãos, de um lado, e “subgente” e “subcidadãos”, de outro, é evidente que tal consenso se manifeste, ora de modo visceral ora de modo sutil, nas instituições de educação, sobretudo naquelas escolas voltadas para a formação das classes médias alta.

 Que a escola e os educadores que a integram reavaliem a “pedagogia” contida na propaganda, pois a tarefa essencial da educação e das escolas na formação das pessoas é contribuir para a sua emancipação. Só podemos falar de emancipação quando esta é, também, uma emancipação dos preconceitos, quer dizer, a superação de seu poder sobre nós, nossos pensamentos e atos. E isto somente é possível questionando e criticando concepções sociais como as que estão presentes na peça publicitária.

 *) Professor de Sociologia. Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais – UFRN. Editor e integrante do Conselho Editorial da Carta Potiguar. Contato: alysonfreire@cartapotiguar.com

Serejo: A orfandade de Natal


Data: 19 outubro 2012 - Hora: 17:51 - Por: Vicente Serejo

 Natal é hoje uma cidade órfã de líderes. Se não somos vítimas de oligarquias, pagamos o preço de um processo oligarca que empobreceu a escola política que nos anos sessenta formou uma geração inteira. De gestores públicos a vereadores, governadores e senadores, despertando o espírito público que hoje tanto nos falta. Dos filhos de seguidores de uma tradição passamos a herdeiros de profissão e de empregos, mas sem preparo e buscando nutrir dos mandatos só uma forma de consagração social.

 Antigamente, os mais jovens frequentavam a escola dos políticos. Eram oficiais de gabinete ou aprendizes assessores, depois chegavam aos primeiros cargos ou depois de credenciados pelo exercício da política, alcançavam as redações e as praças. Hoje, não. Dos cueiros da família já saem para o treino geral de matreirice, e de incautos passam a sabidos. De incúria é feito o nosso novo cenáculo, sem nem ao menos um aprendizado consistente, até lúdico para treinar a alma humana nos jogos da criação.

 Não é só um fato nacional alarmante, por si só, esse adiamento do comício da presidente Dilma Rousseff para não sofrer esvaziamento de plateia com o público concentrado nos capítulos finais da novela Avenida Brasil. Do macrocosmo, como gostam de dizer os sociólogos e economistas, passemos ao microcosmo, e flagra também aí o dado alarmante e demonstrador da nossa total falta de interesse: a abstenção dos eleitores natalenses, somados aos nulos e brancos, venceu em Natal no primeiro turno.

 Só a abstenção – ausência nas urnas – chega a 96.422 mil votos, a segunda posição na contagem dos votos de candidatos, o que já revela todo o descrédito do natalense, se não é o próprio desprezo diante de uma pobreza política que nas últimas décadas destruiu a arte de liderar. Ainda que não fosse uma ciência, o exercício da vida pública caiu no desvão do seu próprio vazio, e passamos à artimanha. Nossos políticos usam as ruas e praças como cenários das imagens televisivas e não como tribunas.

 Foi o que nos legou o jogo familiar nesses últimos vinte anos, jogado como uma forma de fazer política. Duas famílias terceirizando a luta de Natal, alternando seus apoios a uma mesma e única candidata pelo desinteresse em renovar de verdade seus quadros. E na Câmara, a primeira escola legislativa formadora do espírito público, quando um sobrinho fracassa nos descaminhos das pequenas ambições, inventa-se outro. Ou, tanto pior, fazemos da política um descartável campo de fenômenos.

 Sejamos sinceros: quem sente a inevitável necessidade de ouvi-los? Quem deseja participar da discussão de suas ideias? Quem, por acaso, imagina vê-los construindo novos destinos e conquistando um futuro coletivo? Ninguém. O que se tem é uma Natal desinteressada a lançar seu olhar de desprezo por viver um terrível sentimento de orfandade. Uma Natal sem líderes, hoje rica de gravatas e pobre de ideias. Como se fosse possível revogar da política o belo exercício diário e insubstituível da vocação

sábado, 17 de novembro de 2012

Vídeo: Nanok of the North de Robert Flaherty, 1921


Antropologia visual

 A Antropologia visual (por vezes designada Antropologia da imagem ou Antropologia visual e da imagem) é um ramo da antropologia cultural, aplicada ao estudo e produção de imagens, nas áreas da fotografia, do cinema ou, desde os meados dos anos 1990, nos novos ‘’media’’ utilizados em etnografia. A antropologia cultural (ver artigo em inglês), a par da antropologia física (estudo do Homem biológico e da sua evolução - ver artigo em inglês), é uma bifuração da antropologia, enquanto ciência geral do Homem.

 Envolve também o conceito o estudo antropológico da representação visual, no ritual, no espetáculo, no museu, na arte ou na produção ou recepção dos meios de comunicação de massa, os media. Ver em inglês artigo sobre esta matéria

 Aplica-se a designação para exprimir a ideia de observação do real pela imagem, tida como mais “fiel” do que a palavra ou o discurso (ver sobre este tema ensaios ‘’online” de Ricardo Costa), ou como prova objectiva de determinado evento ou realidade.

 No fundo, o conceito de antropologia visual, embora se restrinja às aplicações que se usam nos métodos da ciência, no sentido lato é uma questão central que surgiu desde que o Homem é homem : no momento em que resolveu representar-se a si próprio pela imagem.

 Desenvolvimento

 Pode se considerar como precursores da antropologia visual Walter Baldwin Spencer e Rudolf Poch, (Rony, 1966) eles utilizaram pela primeira vez a máquina de filmar nas suas expedições, retratando os hábitos de aborígenes para a criação de arquivos na Alemanha, notando eles, pela primeira vez também, as distorções de comportamento das pessoas representadas, distorções essas derivadas da simples presença e uso dessa ferramenta, a câmara. Cultivam a antropologia visual, cada um a seu modo, Robert Flaherty (cineasta e não cientista, mas inspirador do movimento), Margaret Mead, Gregory Bateson (Trance and Dance in Bali) (artigo em inglês), Marcel Griaulle (artigo em inglês), Germaine Dietrerlen (artigo em francês), Jean Rouch, este numa perspectiva menos convencional, misturando documentário e ficção em muitas das obras etno-cinematográficas que realiza, abrindo novas portas à pesquisa antropológicas e à modernidade do cinema. Há imagens (sempre as houve) em que o real se transfigura em arte, ao pôr a nu a beleza da verdade.

 Marcel Mauss (1872 - 1950) em seu Manual de Etnografia (1947) situa o uso da fotografia entre os métodos de observação no trabalho de campo. Destaca o valor da fotografia aérea, como auxiliar da cartografia e do recurso das telefotos (para se evitar poses) recomendando também a documentação fotográfica de todos os objetos e o uso excessivo de imagens ou sua utilização sem registro detalhado (hora, local, distância, etc.) das circunstâncias de sua utilização. Devem ser realizados comentários sobre cada fotos e essas anotações incluídas no diário de campo. Observe-se, nessa perspectiva, a qualidade dos registro e anotações de Bronisław Malinowski (1884 - 1942) na sua pesquisa entre os nativos dos arquipélagos da Nova Guiné e Melanésia.

 Cabe aos antropólogos atuais diferenciar as contribuições de real valor etnográfico entre a profusão de imagens de nossa época, face ao desenvolvimento das novas midias e entre os pintores / desenhistas das grandes expedições naturalísticas tais como John Webber ( 1751- 1793 ), Jean-Baptiste Debret (1768 – 1848), Rugendas (1802 - 1858) e nesse sentido é esclarecedor a colocação de Etienne Samain sobre tais documentaristas historiadores:

 ..."reconhecemos, primeiro, que não faltam pesquisadores que não têm uma formação antropológica consistente e que, no entanto, lançam-se de corpo e alma, com toda a parafernália ótica, na aventura visual antropológica. Seus empreendimentos são generosos, sem dúvida, mas nos decepcionam rapidamente, ou porque não souberam medir suficientemente a viabilidade das realizações que vislumbravam, ou porque imaginaram que podiam fazer a economia da complexidade dos fatos antropológicos que procuravam registrar"... (Samain, 1995)

Antropologia visual no Brasil

 Buscando os precursores dessa ciência no Brasil não podemos deixar de contemplar a beleza e perfeição técnica da obra de Marc Ferrez (1843 - 1923) e mais recentemente do também franco-brasileiro Pierre Verger (1902 - 1996). O primeiro fotógrafo, foi um brasileiro, filho dos franceses Alexandrine Caroline Chevalier e de Zéphyrin Ferrez, gravador de medalhas e escultor vindo como membro da Missão Artística Francesa homônimo do tio e escultor Marc Ferrez presente nessa mesma missão, retratou cenas dos períodos do Império e início da República, entre 1865 e 1918. Poderia ser considerado um pioneiro da Antropologia Visual no Brasil, contudo não era essa a sua auto - referência, pois mais identificado por força de sua época, como um naturalista - historiador e antes de mais nada fotógrafo, nos deixou um legado sobre a vida urbana, rural e selvagem do Brasil que nos obriga a uma reflexão sobre antropologia e história. Torna-se evidente em seu trabalho sobre o Brasil a a identificação das etnias formadoras e/ou da processo histórico da colonização e, por força de sua inserção social, como documentarista integrante do governo brasileiro a ótica de registrar e progresso e avanço tecnológico de nosso país.
 Pierre Verger foi um fotógrafo e etnólogo autodidata. Assumiu o nome religioso Fatumbi por também ser um babalawo (sacerdote Yoruba) e de certo modo por ter dedicado grande parte de sua obra, ainda não completamente conhecida e estudada, à cultura e religiosidade negra no Brasil e África.

  Filme etnográfico
 Etno-ficção
 Doc-ficção (como objecto de estudo)
 Filme de ficção (como objecto de estudo)
 Novas Midias

 

  Objectos de estudo
 o olho
 a percepção visual
 a análise da imagem
 a interpretação da imagem
 a realidade - "o real"
 Antropologia da arte

Bibliografia

 COSTA, Ricardo. A outra face do espelho. Jean Rouch e o “outro” PDF Set. 2012
 COLLIER, John . Antropologia visual, a fotografia como método de pesquisa. SP, EDUSP, 1973
 FISCHER, Michael D.; ZEITLYN, David. Visual anthropology in the digital mirror: Computer-assisted visual anthropology University of Kent at Canterbury, 2003 HTML, en. Set. 2012
 KHOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Fotografia e Interdito. RBCS Vol. 19 nº. 54 fevereiro/2004 PDF Set. 2012
 MAUSS, M. Manual de Etnografia. Lisboa:Ed.Portico, (1947) 1972.
 SAMAIN, Etienne. “Ver” e “dizer” na tradição etnográfica: Bronislaw Malinowski e a fotografia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 1, n. 2, p. 23-60, jul./set. 1995 PDF Set. 2012
 RUBY, Jay. Visual Anthropology. In Encyclopedia of Cultural Anthropology, David Levinson and Melvin Ember, editors. New York: Henry Holt and Company, vol. 4:1345-1351, 1996 HTML, en. Set. 2012
 SOLHA, Helio Lemos. A Construção dos Olhares. Tese de mestrado sobre a Antropologia Visual (Unicamp), Campinas, SP 1998 Download Set. 2012
 RONY, Fatimah Tobing. The Third Eye: Race, Cinema, and Ethnographic Spectacle. Duke University Press, 1966 Google Books Set. 2012

 Ligações externas
 em português Recursos sobre antropologia visual (CEAS).
 GREI - Grupo Interdisciplinar de Estudos da Imagem sobre Antropologia e Sociologia da Imagem.
 Fundação Pierre Verger
 em francês Société Française d'Anthropologie Visuelle
 em espanhol Revista Chilena de Antropología Visual
 em inglês Society for Visual Anthropology
 Visual Anthropology.net.
 Webring - Visual Anthropology
 Center for Visual Anthropology University of Southern California. Set. 2012
 John Collier (anthropologist)'s photographs, on Flickr Set. 2012

 

xiurinja taispo / angirú tupa / pater.amicus


Para saber destas e outrashistórias do Movimento Indígena do RN ver em:


Professor Manoel.

    Reside em um quarteirão de traz da Escola Irma Arcângela, Ensina historia na Universidade Vale do Acaraú. Na sua casa, durante as férias escolares, o Centro de Estudos Indígena do Igapó realiza suas reuniões. O professor é pai de Gabi Amanguaçuporã, integrante do Centro de Estudos desde 2007 quando foi aluna da Escola I. Arcângela.

        No fim do ano na sua casa, Aderido Rodrigues costuma ministrar aulas de guarani. O pajé Awá Zeruzã costuma aparecer mode falar de plantas, o paraguaio Helio Cabrera vem pra tirar dúvidas sobre o guarani, garotos do grupo Bonde dos Considerados fazendo repi. E lá vem o professor, sempre sorridente, pondo as mesas, quadros, cadeiras, cafezinho com bolachinhas, água, leptopi.

Serejo: O fim do mundo


Data: 16 novembro 2012 - Hora: 17:52 - Por: Vicente Serejo

Não sei Senhor Redator, se o mundo acaba em dezembro como anunciam os profetas bíblicos ou zodiacais. Sei que o mar avança com o furor de mil gigantes. Ontem, no 15 deste novembro, altruístico e republicano, uma das casinholas – de madeira e cobertas de fibra – do porto onde os pescadores guardam as redes e apetrechos, amanheceu com os alicerces devorados pelas águas. Foi preciso escorar às pressas para não tombar. É a segunda. A terceira é a próxima. Já mostra os seus tijolos, expostos à arrebentação.

Não é que se possa evitar o fim do mundo só com o escudo do medo. Ou fugindo pelo oitão. Mas bem que poderia ser mais suave. Pelo menos para os que vivem na beira do mar, ali na praia onde todas as ondas antes chegavam mansas como se fossem simples remansos do que sobrou da viagem ao longo do maralto. Agora se erguem furiosas, empurradas pelo vento Leste que parece ter escondido a força das ventanias de agosto em algum lugar e agora chegam devolvendo tudo quanto jogaram em suas águas.

Confesso Senhor Redator: não espero ver o mundo acabar. Não acho ser coisa pros nossos dias. Deus deve andar arrependido de umas tantas coisas e com remorso diante de umas tantas outras. Quem não estaria? Mas o mundo é a mais bela criação de Deus. Foi aqui, criando a beleza do nada, no mar e no deserto, que fez do vazio o grande instante da monumentalidade. E se nas descrições do Paraíso há a ausência do mar, talvez tenha sido intencional. É que o mar tem uma beleza só sua. Trágica e sublime.
Fui menino e hoje arrasto mais de sessenta anos ouvindo que o mar é triste, tem a melancolia das coisas monótonas. Não, não é. A tristeza e a alegria estão dentro de nós. No mar de dentro. Aquele feito das águas de nossas próprias almas. É lá que flutuam as sensações humanas. No doce mar de Dorival Caymmi, aquele que embala a morte e o sono cansado e humano de João Valentão, ou o mar primevo e talássico de Baudelaire, espelho onde os homens contemplam as mágoas da sua própria humanidade.

Por isso a beleza do mundo não vai acabar assim, num dia qualquer de dezembro de um ano sem graça. É maior do que o apocalipse dos profetas e os economistas, bruxos da eternamente anunciada crise. Li outro dia que a tristeza dos catastróficos anunciando o fim do mundo infelizmente não seria mais em dezembro deste ano. Outros, os inconformados, vendo que Deus não lhes deu a menor satisfação, transferiram para 2018, quando um cataclismo destruirá num só golpe toda a raça humana.

Aliás, Senhor Redator, pra ser sincero, nada demonstra melhor a grandeza de Deus do que a raça humana. Trágica e ao mesmo tempo sublime, há de ser fruto de sua misericórdia. Ora, quem seria capaz de ungir todos os seres humanos à imagem e semelhança de Deus? Sem distingui-los diante da grandeza de uns e da miséria de outros? Quem perdoaria a todos, todos os dias, fracos e reincidentes, que mordem o fruto proibido como se viver não fosse uma graça, e essa graça não representasse o próprio Paraíso?

 

Serejo: Litigância hospitalar

Data: 18 outubro 2012 - Hora: 18:09 - Por: Vicente Serejo

 Parece que tem sido muito difícil aos donos de empresas hospitalares compreenderem, na sua essência, a natureza do negócio que empreendem. Para eles, a menos que o façam por litigância de má fé – e neste caso são passíveis de censura pública – a prestação de assistência a urgências e emergências na área da saúde é igual a qualquer outro tipo de assistência técnica. E que podem ou não, a seu juízo, de acordo com o livre arbítrio de cada empresário e sem quaisquer direitos assegurados à sociedade.

 Reincidentes, tentaram uma primeira vez a greve patronal sem qualquer observância das leis que regulam esse tipo de decisão. Como se fossem livres para movimentos paredistas acima de toda a força conceitual do crime de omissão de socorro. Mesmo compelidos a manterem suas portas abertas por decisão da Justiça, tentaram outra vez, agora arrimados numa fixação de prazo com antecedência, convencidos de que desta feita seria fácil driblar a norma legal, agora com feia e abusiva transgressão.

 Os hospitais são estruturas juridicamente híbridas nas relações com a Unimed. Dentro deles, na condição de sócios e dirigentes, estão médicos que também são sócios da cooperativa e, portanto, eleitores de suas decisões plenárias com acesso a todas as informações. Como sabem, quando sentam à mesa de seus gabinetes hospitalares, que a Unimed representa em média nada menos de cinquenta por cento do faturamento, o que por si só garante uma magnitude que só pode ser negada como pressão.

 Mais: seus clientes pagam suas mensalidades, sem direito a voz e a voto, sob pena de suspensão automática da prestação de serviço no prazo contratual. Ora, por mais leonino que possa ser quando se fecha ao voto e à voz dos que pagam, não pode ser unilateral a ponto de qualquer parceiro suspender o atendimento com a justificativa de um simples aviso e como se a sociedade não fosse regida por leis e essas leis cuidassem apenas de preservar a saúde financeira de uns contra a saúde da vida de outros.

 Não se nega que as negociações entre a Unimed e os hospitais se arrastam e que estes merecem ter os seus serviços corretamente remunerados. Mas, daí a se permitir que vidas humanas venham a ser usadas como buchas de canhão das empresas hospitalares, pressionando uma cooperativa que também é deles, médicos, seria aceitar o caos como prumo e fio de conduta. Não, não é assim que os parceiros devem conduzir suas relações, num melancólico espetáculo de transgressões que beiram o cinismo.

 Não queiram os donos de hospitais que a sociedade livre e democrática aceite a reencarnação de Frederico II, o déspota louco da Prússia na escuridão do século dezoito. Aquele que ao construir seu castelo incomodou-se diante de um moinho que impedia a visão da bela paisagem do alto das ameias e, irritado, quis comprá-lo ao proprietário que não aceitou vender por ser uma velha tradição de família, de geração a geração. Ameaçado de destruição, respondeu sem ter medo: ‘Ainda há juízes em Berlim’

Serejo: Mercado da saudade


Data: 17 outubro 2012 - Hora: 18:00 - Por: Vicente Serejo

 Ora, ora, e eu que imaginava já ter guardado nos salões da alma tudo quando seria doloroso esquecer, de repente descubro na página de um jornal português um Mercado da Saudade. Cheio de certeza, pensei comigo: bobagem. O que cada coisa possa dizer de mim, já tenho. Dos meus teréns, modéstia à parte, cuido eu. Como se tudo coubesse num sótão, nem que a sua noite tenha a iluminar apenas a chama bruxuleante de uma velha lamparina a projetar nas paredes as réstias do passado.

 Ninguém, Senhor Redator, se desfaz tão facilmente da vida que passou. Há em cada coisa um pouco daquela dor existencial das coisas que passaram como avisou Camões. Esses pedaços de dor vão ficando aqui e ali. São os grãos da memória. Em Braga, leio no Jornal de Notícias, de Lisboa, um mercado cuidou de ter nas suas prateleiras comidas, bebidas e objetos tocados de uma certa e doce nostalgia. É lá que os portugueses matam a saudade de tudo que um dia a noite dos tempos devorou.

 Em Lisboa, no fim da pequena rua do lado da velha e bela Livraria Bertrand, conheci há uns cinco anos uma loja assim. E fiquei freguês. Não digo de todos os anos. Só quando posso, de vez em quando. Lá comprei uma tabuada igual à da infância, uns poucos livros e as réplicas perfeitas das três andorinhas do famoso Bordalo e que minha avó tinha no terraço da sua casinha de duas arcadas, ali na Rua Potengi. Como se voassem no céu branco da parede, elas azuis, hoje azulando na saudade.

 Trouxe exatamente três, Senhor Redator, em três tamanhos diferentes, e para que repitam aqui entre prateleiras de livros velhos o mesmo vôo do meu tempo de menino, quando cheguei de Macau para estudar na capital. Do lado, tinha o ABC com a sua sede moderníssima, seu chão em quadrados pretos e brancos, suas festas elegantes e inacessíveis, cercada de taças e troféus. O ABC dos filmes de Tarzan, com Johnny Weissmuller com aqueles seus gritos na selva cheia de feras perigosíssimas.

 Os portugueses, a exemplo da nossa brasilidade, falam de sua portugalidade, uma expressão da afetividade lusa que não conhecia, criada para designar o gosto e a saudade de tudo quanto pode ser um retorno ao ontem. O Mercado da Saudade não vende ícones de tristeza. Pelo contrário. É tanto que seu fundador tem só 34 anos e nada viveu de tão antigo assim. Mas ele, que é design, percebeu que a saudade portuguesa não é triste. É alegre e é essa alegria de rever que alimenta seu mercado.

Por isso fui lendo e compreendendo esse mercado com nome de saudade. Não para vendê-la – a saudade é algo muito pessoal e intransferível. Mas a saudade como leitmotiv. Como força de uma inspiração que de repente se traduz num cheiro de um velho perfume ou um antigo sabonete que na infância perfumava a sala de jantar. Por isso a minha tabuada vive aqui, exposta a quem desejar revê-la, como era na infância. E da parede, um dia, as minhas três andorinhas voarão. Como antigamente.

domingo, 11 de novembro de 2012

Vídeo: Zé Manoel


Música: Zé manoel


ZÉ MANOEL

Jovem, simples e requintado.

Um petrolinense de 28 anos quer te provocar!

Zé Manoel é compositor, músico, pianista e apesar de jovem já coleciona elogios da crítica independente e dos amantes da genuína musica brasileira.

Com harmonia e arranjos requintados, Zé, já participou dos mais importantes festivais de música brasileira.

Seu trabalho é mais um daqueles que dispensam elogios e rótulos…

O que predomina é a simplicidade e a essência musical que nos toma aos ouvidos, acalmando a alma num inexplicado equilíbrio sensorial.

Simples e tocante.

 

Lima: Cinco coisas

Jairo Lima

  MEU PRIMEIRO ASSASSINO.

 Conheci meu primeiro assassino aí pelos nove, dez anos, isto é, antes eu já o conhecia, mas ele ainda não era assassino, e por conhecer não quero dizer que tínhamos alguma intimidade, ou que sequer nos falássemos, mas como deixar de conhecer alguém em Arcoverde, cidade pequena, magra e comprida afundada entre serras cinzentas, como não conhecer, dizia, nem que fosse só de vista até porque eu, menino sambudo, nem sonhasse de  ser amigo de um cabra com mais de trinta anos, sério, gordo, amarelado, que trabalhava na loja de disco do pai, se ocupando do mais sublime dos afazeres, de vender rumbas, boleros e fox-trotes e sambas na mais pacata das cidades, mais admiraria até, se alguém pudesse ver naquelas mãos que botavam os discos pra girar no prato, ou naquela voz suave e abaritonada que dizia a senhora quer levar ou o senhor já ouviu este, chegou ontem, quem diria que esta mão e esta voz se levantaria contra uma moça pacata, enfermeira, morena, baixinha, crente, médium vidente, sossegada, que vivia do seu suor?

Mas, coisa do destino, a moça recatada apaixonou-se pelo aveludado barítono e com ele foi-se aos matos.

Passou-se. Um dia formou-se uma pequena multidão num terreno baldio ao lado da minha casa. Saímos a ver em que dava aquela milacria e nos juntamos ao grupo que espiava o relento.

E aí, do meio do escuro,  do vento, da poeira, lá vem dois soldados trazendo meu assassino, a cara gorda avermelhada, as mãos manchadas de sangue, os olhos esbugalhados, o cabelo assanhado, passando por mim sem me ver, sem ver ninguém. Esta noite custei a dormir, com medo de alma. Ficava parado, olhando os caibros no teto, escutando o vento. Até que madornei, sonhei com uma lua redonda, ensanguentada, senti frio embaixo dos cobertores e me mijei.  Acordei no escuro, triste e molhado.

DEUS E DONA LIQUINHA

 A história com dona Liquinha se passa no circo, numa noite, e na missa, na manhã seguinte.  Dona Liquinha, ora, era uma santa, católica e apostólica beata, gordota, cara de lua cheia, olhos bovinos, bondosos, mortiços, um tanto assustados e estava no circo, onde também estava eu, ela na frente, no camarote com o marido, eu lá atrás, no poleiro, quase de frente pra ela e aí, depois do palhaço e da rumbeira,  veio o mágico.  E disse a que veio. Com gestos largos, volteando com graça quase feminina as mãos ossudas, puxou um coelho da cartola puída e descorada.

Olhei pro mágico, olhei pro coelho, olhei pra Liquinha.  E vi em seus olhos o transe,  o êxtase, turíbulos, incenso,  rosa mística, speculum justitia, causa nostrae laetitiae, ora pro nobis. Amem.

No dia seguinte, na missa, o padre transforma o pão e o vinho no corpo e sangue de Cristo. Liquinha nada. Lá, parada, na dela, balbuciando de qualquer jeito uma reza insossa, mãos postas com desmazelo, olhos entediados. Eu, do lado de fora da igreja, no vão da porta que dava para o altar, comparava : quedê olhos brilhantes e esbugalhados, quedê o sorriso doce, beatificado, quedê os langores do céu? O coelho do mágico se entronizara no coração de Liquinha, correndo com o cristo do padre.  Liquinha matara deus. Era meu segundo assassinato.

 

INTERMEZZO

 Depois que Liquinha matou deus tudo no mundo perdeu a alma. Mas eu peguei meus amigos e soprei neles uma alma inventada.  Vá lá que não eram almas de mermo. Vá lá que não assombram, nem viram almas penadas. Foi o que pude fazer. Não é nem presente, é só uma lembrancinha. Mas, em caso de morte, sempre dá pra ser usada.

 
INVARIAVELMENTE

 Em Arcoverde os meninos estudavam no colégio do padre, o Ginásio Cardeal Arcoverde. As meninas frequentavam o colégio das freiras, o Imaculada Conceição.

No domingo, nos juntávamos para a missa dos estudantes.

A gente, de terno azul marinho de tropical, suávamos sob o sol formando em fila na frente da igreja, vigiados pelo padre. As meninas, em pelotão  também formadas, exibiam seus trajes de gala sob a vigilância feroz das freiras.

Entrávamos na igreja. A gente ocupava os bancos da direita e as meninas os da esquerda, no mais absoluto silêncio. A missa começava.

La pras tantas, as meninas salmodiavam:

Cristo vence, Cristo reina,

Cristo impera sublime aclamação...

Nisso, os moleques lá de trás entoavam, em contraponto, o refrão:

Acla-ma-ção!

O padre espumava de raiva. No sermão, invariavelmente, nos chamava de canalhas. Exigia respeito, falava do cristo, da cruz, do sofrimento, da pureza de uma vida santa e regrada.

Depois, se embeiçou de  uma menina do colégio das freiras e se casou.

 
ORDÁLIA*

 Meu último assassino era um  professional respeitado, com muitas mortes nas costas, amigo da rua, compadre de minha prima Ivone, alí em pé, na salinha, mostrando cicatrizes de bala pelo corpo e se gabando de estar vivo por intercessão dos santos e poder de deus.

E os que tu matou?

Admirou-se.  Cumade, quem sou eu pra decidir causa de vida ou morte de um vivente?  Falar verdade,  só apertei o gatilho.  Quem matou foi deus.

 *Ordália é um tipo de prova judiciária usado para determinar a culpa ou a inocência do acusado cujo resultado é interpretado como um juízo divino. Também é conhecido como juízo de Deus (judicium Dei, em latim).As práticas mais comuns da ordália são as que envolvem submeter o acusado a uma prova dolorosa. Se a prova é concluída sem ferimentos ou se as feridas são rapidamente curadas, o acusado é considerado inocente. Na Europa medieval, este tipo de procedimento fundava-se na premissa de que Deus protegeria o inocente, por meio de um milagre que o livraria do mal causado pela prova.

sábado, 10 de novembro de 2012


Roliúde em formato digital

por Homero Fonseca

 Pra quem se interessar, o romance "Roliúde" está disponível em formato digital, ao preço de R$ 27,00.
Eis os dados da editora:

Roliúde
Homero Fonseca | Editora Record

Edição digital
R$ 27,00

Você pode ler no seu Windows PC iPad Tablets Android

Formatos

ePub: Trata-se de um padrão internacional para livros digitais. Permite que a leitura seja uma experiência agradável em qualquer tamanho de tela, pois permite aumentar ou reduzir o tamanho da fonte utilizada, bem como o tamanho da página, entre outras funcionalidades, adequando o livro às necessidades do usuário.
OFIP: Inovadores, estes formatos de publicação permitem não somente uma leitura mais agradável, como também trazem ferramentas interativas como vídeos, álbuns de fotos, hypertextos, hyperlinks e visualização conforme a preferência do leitor (retrato ou paisagem, disponíveis somente em iPad).
PDF: O PDF (Portable Document Format) é um formato portátil para documentos, muito usado na internet devido à sua versatilidade, facilidade de uso e tamanho. Um documento PDF tem a mesma aparência, gráficos e formato que um documento impresso.

ficha técnica
Edição digital
Editora Record
ISBN-13 9788501095336
Número de páginas: 240
Formato ePub
Descrição

O romance ROLIÚDE, de Homero Fonseca, é um achado literário. O livro trata da vida de Bibiu, um histriônico contador de histórias, uma espécie de Ulisses nordestino, com um pé na caatinga e outro nas salas de cinema da capital, que vive de narrar enredos de filmes brasileiros e hollywoodianos, no interior do Nordeste, na década de 40. Enredos de filmes como Casablanca, ...E o Vento Levou, O Ébrio, No Tempo das Diligências e King Kong, devidamente "traduzidos" para o linguajar dos caminhantes das veredas sertanejas, interpenetram a narrativa das peripécias do personagem central, que vão da rumorosa caçada a extraterrestres na Serra do Mimoso ao involuntário heroísmo na Revolução de 30, passando pela peleja com um corintiano comunista até um atentado praticado por um jagunço a serviço de um coronel corneado. A história de Bibiu, clown formado na escola da vida, mistura tons picarescos, cordelísticos e cinematográficos, produzindo algumas das páginas mais engraçadas (sem perder o tom de crítica mordaz aos poderosos) da literatura brasileira.

Para acessar:

https://www.iba.com.br/livro-digital-ebook/Roli%C3%BAde-6d6f69af678d922c787380939562fd6f?fb_action_ids=367776396648958&fb_action_types=og.likes&fb_source=aggregation&fb_aggregation_id=288381481237582

 

 

 

 

Serejo: Camilo Barreto

Por: Vicente Serejo

 Quando ninguém na Prefeitura cuidava da arborização e ajardinamento de Natal Camilo Barreto, com um pequeno orçamento de secretário de serviços urbanos, já projetava praças e plantava árvores na cidade. Fui repórter cobrindo a área urbana e freqüentava sua secretaria em busca de notícias, ali na Av. Rio Branco. Preocupava-se com o pequeno horto municipal que reproduzia mudas de árvores e plantas ornamentais para os canteiros e jardineiras que ele mesmo desenhava, até nos detalhes, na sua mesa.

 Lembro que antes de construir sua casa de veraneio numa pequena enseada de Pirangi, entre dois pontais de pedras que reservavam de forma natural uma perfeita praia particular, teve a preocupação de preservar a vegetação nativa. Fez a estrada de acesso, dentro do seu terreno, cumprir o traçado natural e respeitar o relevo entre os pequenos morros, até alcançar o platô que dava para o mar, onde construiria a casa. E fez nascer a vivenda, entre árvores, no alto, com um nome bem cascudiano: Quinta das Dunas.

 Tinha raízes sertanejas e por isso tinha visão cósmica da terra e das árvores, do sol e dos ventos, defendendo as casas voltadas para o nascente, como na velha tradição do sertão onde foi menino. Sabia dizer o nome das árvores, das plantas, comuns ou raras, e das madeiras, e gostava de explicar traçando tudo com sua lapiseira de engenheiro, o grafite desenhando formas e detalhes. Muitas vezes, vi desenhar uma praça, em rabiscos rápidos, para mostrar como seria o jardim anunciado para esse ou aquele bairro.

 Quando projetou os anexos do Instituto Ludovicus – todos indispensáveis à funcionalidade de um espaço cultural – nas áreas externas do chalé de Câmara Cascudo, teve senso e bom gosto de manter a harmonia arquitetônica nos detalhes caracterizadores de sua beleza, sobretudo sem ferir o pitoresco do seu jeito de ser. Lembro que elogiei na coluna. Como se ali, numa daquelas sacadas debruçadas sobre a cidade antiga, a qualquer momento Cascudo surgisse fumando seu charuto para olhar seu rio antigo.

A própria restauração do chalé é um exemplo de padrão técnico. Desde seus móveis originais recuperados nas suas formas e vernizes naturais e perfeitos, portas, bandeirolas, soleiras e janelas que se abrem para os oitões e os fundos. As treliças do terraço que margeava a área de serviço, até a antiga banheira com os seus azulejos e sua velha torneira, estão preservadas. Tudo que de moderno foi preciso fazer – como a cantina, o auditório, os arquivos – mas sem nada quebrar a harmonia de um lugar único.

 Semana passada, depois de uma longa e silenciosa enfermidade, Camilo deixou a cidade. Acho até que voltou para a sua casa que construiu com uma técnica milenar de alvenaria, sem concreto, num exemplo perfeito de sensibilidade e engenhosidade. Atendeu a Ana Maria, mas confessava, discreto e bem humorado, que não gostava de apartamento. Mas foi, e levou seus santos. Natal perdeu aquele que um dia, na Prefeitura, exerceu o bom ofício de plantar árvores nas ruas e jardins nas suas praças.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Vídeo: Luis da Câmara cascudo


Lima: O velho sábio chinês

Por Jairo Lima

Certo dia, quase à hora de abrirem-se as portas do shopping, apresentou-se ao segurança um velho sábio chinês que lhe falou deste modo:
- Diz-me, jovem ocidental, porque te pões a guardar uma porta fechada?(1) Se ela não franqueia o acesso a quem quer sair ou entrar, porque te interpões entre ela e os que, como eu, se avizinham do shopping?

- Esta é uma questão, grande Mestre, sobre a qual não me é dado comentar, pois tenho por obrigação indeclinável obedecer aos meus superiores.
A estas palavras o velho sábio se inclinou profundamente diante do segurança, juntou as mãos sob a barbicha que lhe adornava o queixo e rezou antigas orações.
Neste momento se ouviu enorme estrondo de mãos batendo na porta metálica entre gritos desesperados de socorro.

-Abram, sou um intelectual(2), passei a noite trancado no shopping e estou morrendo de fome.
O segurança mais que depressa levanta a ruidosa porta e um Intelectual-de-Shopping , exânime e ensangüentado, lança-se nos seus braços e desfalece.
Diante disto, o sábio chinês nem se toca, cofia a barba e sorrateiramente se esgueira para dentro do shopping vazio, sem que o segurança perceba. E lá dentro vive vinte profícuos anos de meditação e recolhimento (3).

Moral da história: Para o sábio mais vale um Intelectual-de-Shopping com fome do que dois na praça da alimentação.

Notas:

(1) Vejam só a onda do malandro.

(2) Notem que ele não acrescenta “de shopping” , prática, de resto, comum e compreensível entre os Intelectuais-de-Shopping, sempre em busca de respeito e admiração, embora para o Segurança, note-se também, isto não faz a menor diferença: intelectual é tudo a mesma merda.

(3) Como ninguém percebeu? O pessoal achava que ele era motoboy do China-in-box.

Corpus da pesquisa:

Cardápio do China-in-Box
Tourist Guide ” Descubra os encantos da China”
“Porta Aberta” de Vicente Celestino, gravação RCA Victor 78 rpm
Press release da Globo sobre a nova novela (sic) Caminhos da China.
Best-seller “Construa o seu mundo em qualquer parte do mundo” de Edmund O'Brien.

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