quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Xangô e suas três mulheres, de Abdias do Nascimento

Dos Cruces, de Paloma San Basilio

Sevilla tuvo que ser
con su lunita plateada
testigo de nuestro amor
bajo la noche callada.

Y nos quisimos tú y yo
con un amor sin pecado
pero el destino ha querido
que vivamos separados.

Están clavadas dos cruces
en el Monte del Olvido
por dos amores que han muerto
sin haberse comprendido.

 Están clavadas dos cruces
en el Monte del Olvido
por dos amores que han muerto,
que son el tuyo y el mío.

Ay, Barrio de Santa Cruz,
ay, Plaza de Doña Elvira,
hoy he vuelto a recordar
y me parece mentira.

Ya todo aquello pasó,
todo quedó en el olvido,
nuestras promesas de amores
en el aire se han perdido.

Están clavadas dos cruces
en el Monte del Olvido
por dos amores que han muerto
sin haberse comprendido.

Están clavadas dos cruces
en el Monte del Olvido
por dos amores que han muerto,
que son el tuyo y el mío.

Están clavadas dos cruces
en el Monte del Olvido
por dos amores que han muerto
sin haberse comprendido.

Están clavadas dos cruces
en el Monte del Olvido
por dos amores que han muerto
que son el tuyo y el mío,
que son el tuyo,
que son el tuyo y el mío.

Comunicação Social no Brasil: o direito e o avesso

Por Fabio Konder Comparato - de São Paulo

 “– Bem sei, mas a lei?

– Ora, a lei… o que é a lei, se o Senhor major quiser?…

O major sorriu-se com cândida modéstia.”

Manoel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias.

No conto O Espelho, de Machado de Assis, o narrador assevera a seus ouvintes espantados que cada um de nós possui duas almas. Uma exterior, que exibimos aos outros, e com a qual nos julgamos a nós mesmos de fora para dentro. Outra interior, raramente exposta aos olhares externos, que nos permite julgar o mundo e a nós mesmos, de dentro para fora.

Importa reconhecer que essa duplicidade, no exato sentido de algo dobrado ou dissimulado, tal como a metáfora do conto machadiano, encontra-se tanto em nosso caráter, quanto em nossa organização político-econômica.

É inegável que o caráter brasileiro contém um elemento de dissimulação constante nas relações sociais. Nossa afabilidade de maneiras, tão elogiada pelos estrangeiros, dissimula com frequência sentimentos de desinteresse e desprezo.

Já em matéria de organização político-econômica, sempre tivemos, desde a Independência, um duplo esquema institucional. Há, de um lado, o direito oficial, que é a nossa alma exterior exibida ao mundo. Mas há também, no foro interior de nossas fronteiras, um direito oculto, que acaba sempre por prevalecer sobre o direito oficial, quando este se choca com os interesses dos poderosos.

Creio que o exemplo mais conspícuo dessa duplicidade institucional ocorre nos meios de comunicação de massa.

A maioria das normas sobre a matéria, constantes da Constituição de 1988, é certamente de bom nível. Acontece, porém, que quase todas elas ainda carecem de regulamentação legislativa, vinte e três anos após a promulgação da Carta Constitucional. São armas descarregadas.

Como se isso não bastasse, em decisão de abril de 2009 o Supremo Tribunal Federal julgou que a lei de imprensa de 1967 havia sido tacitamente revogada com a entrada em vigor da Constituição de 1988. Ora, nessa lei de imprensa, como em todas as que a precederam, regulamentava-se o exercício do direito de resposta, inscrito no art. 5º, inciso V da Constituição. Em conseqüência, esse direito fundamental tornou-se singularmente enfraquecido.

Como bem lembrou Lacordaire na França no século XIX, numa época em que a burguesia montante já impunha a política de desregulamentação legislativa de todas as atividades privadas, “entre o rico e o pobre, entre o forte e o fraco, é a lei que liberta e é a liberdade que oprime”. De que serve, afinal, uma Constituição, cujas normas não podem ser aplicadas pela ausência de leis regulamentares? Ela existe, segundo a clássica expressão francesa, como trompe l’oeil, mera ilusão pictórica da realidade.

Inconformado com essa negligência indesculpável do órgão do Poder Legislativo – negligência que, após mais de duas décadas da entrada em vigor da Constituição, configura uma autêntica recusa de legislar – procurei duas entidades, que são partes constitucionalmente legítimas para propor ações dessa espécie: o PSOL e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Publicidade. Elas aceitaram ingressar como demandantes perante o Supremo Tribunal Federal, onde tais ações foram registradas como ADO nº 9 e ADO nº 10.

Qual não foi, porém, meu desencanto quando, intimados a se pronunciar nesses processos, tanto a Câmara dos Deputados, quanto o Senado Federal, tiveram a audácia de declarar que não havia omissão legislativa alguma nessa matéria, pois tudo transcorria como previsto no figurino constitucional!

Acontece que, para cumular o absurdo, a duplicidade no campo da comunicação social não se reduz apenas ao apontado descompasso entre a Constituição e as leis.

Se considerarmos em particular o estatuto da imprensa, do rádio e da televisão, encontraremos o mesmo defeito: o direito oficial é afastado na prática, deixando o espaço livre para a vigência de um direito não declarado, protetor dos poderosos.

A Constituição proíbe ao Poder Público censurar as matérias divulgadas pelos meios de comunicação de massa. Mas os controladores das empresas que os exploram, estes, são livres de não divulgar ou de deformar os fatos que contrariem seus interesses de classe.

Como não cessa de repetir Mino Carta, este é o único país em que os donos da grande imprensa, do rádio ou da televisão fazem questão de se dizer colegas dos jornalistas seus empregados, embora jamais abram mão de seu estatuto de cidadãos superiores ao comum dos mortais.

Cito, a propósito, apenas um exemplo. Em fevereiro de 2009, o jornal Folha de S.Paulo afirmou em editorial que o regime empresarial-militar, que havia assassinado centenas de opositores políticos e torturado milhares de presos, entre 1964 e 1985, havia sido uma “ditabranda”. Enviei, então, ao jornal uma carta de protesto, salientando a responsabilidade do diretor de redação por aprovar essa opinião ofensiva à dignidade dos que haviam sido torturados, e dos familiares dos mortos e desaparecidos. O jornal publicou minha carta, acrescida de uma nota do diretor de redação, na qual eu era gentilmente qualificado de “cínico e mentiroso”. Revoltado, ingressei com uma ação judicial de danos morais, quando tinha todo o direito de apresentar queixa-crime de injúria. Pois bem, minha ação foi julgada improcedente, em primeira e em segunda instâncias. Imagine-se agora o que teria acontecido se as posições fossem invertidas, ou seja, se eu tivesse tido o destrambelho de insultar publicamente o diretor de redação daquele jornal, chamando-o de cínico e mentiroso!

A lição do episódio é óbvia: a Constituição reza que todos são iguais perante a lei; no mundo dos fatos, porém, há sempre alguns mais iguais do que os outros.

Vejamos, agora, nesse quadro institucional dúplice, o funcionamento dos órgãos de rádio e televisão.

Dispõe o art. 21, inciso XII, alínea a, que “compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens”.

No quadro constitucional brasileiro, por conseguinte, a exploração dessas atividades constitui um serviço público; isto é, no sentido original e técnico da expressão, um serviço prestado ao povo. E a razão disso é óbvia: as transmissões de radiodifusão sonora ou de sons e imagens são feitas através de um espaço público, isto é, de um espaço pertencente ao povo. Escusa lembrar que, como todo bem público, tal espaço não pode ser objeto de apropriação privada.

Da disposição constitucional que dá à radiodifusão sonora e da difusão de sons e imagens a natureza de serviço público decorrem dois princípios fundamentais.

Em primeiro lugar, o Estado tem o dever indeclinável de prestá-lo; e toda concessão ou permissão para que particulares exerçam esse serviço é mera delegação do Poder Público. Assim dispôs, aliás, a Lei nº 8.987, de 1995, que regulamentou o art. 175 da Constituição Federal para as concessões de serviços públicos em geral.

Em segundo lugar, na prestação de um serviço público, a realização do bem comum do povo não pode subordinar-se às conveniências ou aos interesses próprios daqueles que os exercem, quer se trate de particulares, quer da própria organização estatal (em razão de economia orçamentária, por exemplo).

Ora, neste país, desde o início do regime empresarial-militar em 1964, ou seja, antes mesmo da difusão mundial do neoliberalismo capitalista nas duas últimas décadas do século passado, instaurou-se o regime da privatização dos serviços de rádio e televisão. A presidência da República escolheu um certo número de apaniguados, aos quais outorgou, sem licitação, concessões de rádio e televisão. Todo o setor passou, assim, a ser controlado por um oligopólio empresarial, que atua não segundo as exigências do bem comum, mas buscando, conjuntamente, a realização de lucros e o exercício do poder econômico, tanto no mercado quanto junto aos Poderes Públicos.

Ainda hoje, todas as renovações de concessão de rádio e televisão são feitas sem licitação. Quem ganha a primeira concessão torna-se “dono” do correspondente espaço público.

A aparente justificação para esse abuso é a norma mal intencionada do art. 223, § 2º da Constituição, segundo a qual “a não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal”. Basta, porém, um minuto de reflexão para perceber que esse dispositivo não tem o efeito de suprimir a exigência de ordem pública, firmada no art. 175, segundo a qual todas as concessões ou permissões de serviço público serão realizadas mediante licitação.

Outra nefasta consequência dessa privatização dos serviços públicos de rádio e televisão entre nós, é que as autoridades públicas, notadamente o Congresso Nacional, decidiram fechar os olhos à difundida prática negocial de arrendamento das concessões de rádio e televisão, como se elas pudessem ser objeto de transações mercantis. Ora, tais arrendamentos, muitas vezes, dada a sua ilimitada extensão, configuram autênticas subconcessões de serviço público, realizadas com o consentimento tácito do Poder concedente.

Será ainda preciso repetir que os concessionários ou permissionários de serviço público atuam em nome e por conta do Estado, e não podem, portanto, nessa qualidade, buscar a realização de lucros, preterindo o serviço ao povo? O mais chocante, na verdade, é que o Ministério Público permanece omisso diante dessa afrontosa violação de normas constitucionais imperativas.

Sem dúvida, o direito brasileiro (Lei nº 8.987, de 13/02/1995, art. 26) admite é a subconcessão de serviço público, mas desde que prevista no contrato de concessão e expressamente autorizada pelo poder concedente. A transferência da concessão sem prévia anuência do poder concedente implica a caducidade da concessão (mesma lei, art. 27).

Mesmo em tais condições, uma grande autoridade na matéria, o Professor Celso Antonio Bandeira de Mello, enxerga nesse permissivo legal da subconcessão de serviço público uma flagrante inconstitucionalidade, pelo fato de burlar a exigência de licitação administrativa (Constituição Federal, art. 175) e desrespeitar com isso o princípio da isonomia.

Para se ter uma idéia da ampla mercantilização do serviço público de televisão entre nós, considerem-se os seguintes dados de arrendamento de concessões, somente no Estado de São Paulo:

BANDEIRANTES: 24 horas e 35 minutos por semana (tempo estimado)

2ª a 6ª-feira
5h45 – 6h45 (Religioso I)
20h55 – 21h20 (Show da Fé)
2h35 (Religioso II)
Sábado e domingo
5h45 – 7h (Religioso III)
4h (Religioso IV)

REDE TV!: 30 horas e 25 minutos por semana (tempo estimado)

Domingo

6h – 8h – Programa Ultrafarma
8h – 10h – Igreja Mundial do Poder de Deus
10h – 11h – Ultrafarma Médicos de Corpos e Alma
16h45 – 17h – Programa Parceria5
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
2a e 3ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
1h55 – 3h – Programa Nestlé
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
4a feira
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
5a e 6ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar

Sábado

7h15 – 7h45 – Igreja Mundial do Poder de Deus
7h45 – 8h – Tempo de Avivamento
8h – 8h15 – Apeoesp – São Paulo
8h15 – 8h45 – Igreja Presbiteriana Verdade e Vida
8h45 – 10h30 – Vitória em Cristo
10h30 – 11h – Igreja Pentecostal
11h – 11h15 – Vitória em Cristo 2
12h – 12h30 – Assembléia de Deus do Brasileiro
12h30 – 13h30 – Programa Ultrafama
2h – 2h30 – Programa Igreja Bola de Neve
3h – Igreja da Graça no Seu Lar

TV GAZETA: 37 horas e 5 minutos por semana

2ª a 6ª-feiras

6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
1h – 2h – Polishop

Sábado

6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
23h – 2h – Polishop

Domingo

6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
8h – 8h30 – Encontro com Cristo
14h – 20h – Polishop
0h – 2h – Polishop

A lição a se tirar dessa triste realidade é bem clara: os meios de comunicação social, neste país, permanecem alheios aos princípios e regras constitucionais.

Para a correção desse insuportável desvio, é indispensável e urgente tomar três providências básicas.

Em primeiro lugar, impõe-se, na renovação das concessões ou permissões do serviço de radiodifusão sonora, ou de sons e imagens, cumprir o dispositivo de ordem pública do art. 175 da Constituição Federal, que exige a licitação pública.

Em segundo lugar, é preciso pôr cobro à escandalosa prática de arrendamento de concessões de rádio e televisão.

Em terceiro lugar, como foi argüido nas ações de inconstitucionalidade por omissão, acima mencionadas, é urgente fazer com que o Congresso Nacional rompa a sua prolongada mora em cumprir o dever constitucional de dar efetividade aos vários dispositivos da Constituição Federal carentes de regulamentação legislativa, a saber:

1) O art. 5º, inciso V, sobre o direito de resposta;

2) O art. 220, § 3º, inciso II, quanto aos “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente;

3) O art. 220, § 5º, que proíbe sejam os meios de comunicação social, direta ou indiretamente, objeto de monopólio ou oligopólio;

4) O art. 221 submete a produção e programação das emissoras de rádio e televisão aos princípios de: “I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

É o mínimo que se espera nessa matéria dos nossos Poderes Públicos, como demonstração de respeito à dignidade do povo brasileiro.

Fabio Konder Comparato é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), doutor em Direito, Prêmio Louis Milliot pela sua tese de doutoramento em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Paris, entre outros; e escritor, autor de A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos (COMPARATO, Fábio Konder) – 4ª edição. São Paulo: Saraiva Editores S.A., 2005. 577 p., além de extensa obra intelectual.


Conferência para mudanças climáticas começa em Durban

 Por Redação, com BBC Brasil- de Durban

Após o fracasso das duas últimas COPs (conferência da ONU para mudanças climáticas) em Cancún e Copenhagen, a 17ª Conferência das Partes da ONU, que começa nesta segunda-feira em Durban, na África do Sul, vem atraindo atenção por ser vista como a última chance de se salvar o Protocolo de Kyoto.


O acordo, que obriga os países desenvolvidos a reduzir suas emissões de gases poluentes, expira em 2012, e até agora não há nenhum outro tratado para substituí-lo.

Kyoto muitas vezes é tido como insuficiente, porque a situação atual exige metas mais ambiciosas e também pelo fato de que grandes potências poluidoras, como os Estados Unidos, não serem signatárias.

No entanto, especialistas acreditam que sem renovar os termos do acordo, fecha-se a principal porta para garantir que a temperatura do mundo não suba 2º C, como era o objetivo do tratado.

E arcar com tamanho retrocesso seria um risco, especialmente em um cenário em que mesmo a crise global não reduziu as emissões de gases que provocam o efeito estufa.

Segundo um estudo divulgado na semana passada pelo Departamento de Energia dos EUA, a liberação de dióxido de carbono bateu recorde – 564 milhões de toneladas ou 6% a mais que em 2009.

Deturpação

-Se deixar morrer Kyoto, vai-se deixar morrer o único acordo top down (quando se tem uma meta a cumprir). E há praticamente um consenso de que nunca mais vai se conseguir outro acordo desse tipo-, disse o embaixador André Aranha Corrêa do Lago, diretor do Departamento de Meio Ambiente do Itamaraty e negociador do Brasil na COP-17.

Para Lago, a anulação de Kyoto implica em negociações paralelas, que não colocam metas, apenas compromissos voluntários – “uma deturpação monumental dos princípios da convenção”.

Ele afirma que esta é justamente a estratégia de governo como EUA, Japão e Rússia: minar Kyoto e obter um novo acordo, que inclua até países como o Brasil.

-Todos dizem querer um resultado equilibrado em Durban. O que o Brasil considera equilibrado seria a aprovação do segundo período de compromisso que deve se estender até 2020, mesmo com um número menor de países-, diz.

Brics

No entanto, apesar das intenções do governo brasileiro, essa aprovação pode esbarrar em entraves relacionados aos Brics.

As negociações paralelas citadas por Lago ocorrem porque os países desenvolvidos não aceitam que os emergentes continuem sem metas para suas emissões. Isso é o que prevê Kyoto, já que quando o acordo foi fechado essas nações não tinham o peso de hoje.

Se de um lado dos Brics o Brasil aceita acatar metas de reduções, no outro lado do bloco China e Índia têm ressalvas, por serem economias dependentes de matrizes fósseis, como o carvão. Já o Brasil se baseia em energias consideradas mais limpas, como a hidrelétrica.

-Essa é a hora de o Brasil mostrar qual tipo de emergente quer ser-, afirma o representante do Greenpeace do Brasil em Durban, Pedro Henrique Torres. “O país que quer investir em uma economia verde ou no desenvolvimento sujo, apostando no carvão e no pré-sal (ou seja, em combustíveis não-renováveis)?, questionou ele”

Para Torres, o Brasil está diante de uma bifurcação, que tem ainda, em lados opostos, o desejo de exibir taxas de desmatamento em queda e um Código Florestal que, para ele, incentiva a derrubada de áreas verdes.

O ambientalista acredita que o Brasil tem poder de negociação no chamado G77, que engloba países em desenvolvimento, mas fica em desvantagem no bloco Basic, que envolve justamente Índia e China.

Desafio

O risco de enterrar Kyoto não é a única expectativa negativa de Durban. A conferência vai estar esvaziada pela ausência de chefes de Estado importantes, especialmente o dos Estados Unidos e os da União Europeia, envolvidos em problemas com a crise econômica. Assim, outros pontos fundamentais das negociações podem emperrar.

-Uma COP que começa para salvar Kyoto já começa errada, porque há outros mecanismos que deveriam ser debatidos-, disse Torres, citando questões como o Redd (mecanismos para reduzir as emissões decorrentes da degradação florestal).

Outro importante mecanismo é o Fundo Verde para o Clima. Criado na COP16, ele pretende reunir USS$ 100 milhões até 2020 para ajudar os países em desenvolvimento a mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

Em vídeo divulgado na sexta-feira, o chanceler Antonio Patriota ressaltou a importância do fundo, dizendo que é preciso garantir que promessas de financiamento sejam cumpridas.

Mas, para Torres essa é outra das tarefas árduas que o Brasil enfrentará na cidade sul-africana. “Se o valor já era considerado insuficiente, num momento de crise a situação piora porque os países desenvolvidos não estão doando o prometido. E o fundo tem praticamente uma morte anunciada.”


Conferência das Cidades vai debater política de resíduos sólidos

Por Redação, com Agência Câmara- de Brasília

A Câmara dos Deputados sediará de terça a quarta-feira a 12ª Conferência das Cidades. O evento é organizado anualmente pela Comissão de Desenvolvimento Urbano. Neste ano, o tema principal do debate é a Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída no ano passado.

Durante os seminários realizados na conferência, os gestores públicos serão preparados para a Política Nacional de Resíduos Sólidos

O presidente da comissão, deputado Manoel Junior (PMDB-PB), alerta para o curto prazo que os prefeitos têm para cumprir a nova legislação.

-Os prefeitos têm até o próximo ano para ter seus planos municipais e intermunicipais aprovados. Além disso, têm até agosto de 2014 para extinguir os lixões a céu aberto-, disse.

O deputado explica que a comissão promoveu cinco seminários preparatórios para a conferência, em várias regiões do País, com o objetivo de preparar os gestores públicos para a Política Nacional de Resíduos Sólidos. A lei estabelece metas de redução, reutilização e reciclagem, para redução do volume dos resíduos. Também cria metas para aproveitamento dos gases gerados em aterros sanitários, para eliminação e recuperação de lixões e para a conversão desses locais em aterros capazes de minimizar os danos ambientais.

Selo Cidade Cidadã

Durante a conferência, cinco municípios brasileiros receberão o selo Cidade Cidadã: Sertânia (PE), Miguel Pereira (RJ), Sertãozinho (PB), e Rio Grande e Novo Hamburgo (ambos no RS). O concurso premia as melhores iniciativas na gestão de resíduos sólidos, coleta seletiva e reciclagem do lixo.


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Leda e o cisne, de Da Vinci

Limites da sexualidade: violência, gênero e erotismo

 Por Maria Filomena Gregori

Ainda que não figure como tema central na constituição da disciplina, a literatura antropológica que trata do tema sexualidade ganha volume crescente nas últimas décadas. O interesse sobre esse tópico remonta ao início do século XX e tem na Vida sexual dos selvagens (1929) de Bronislau Malinowski sua primeira expressão sistemática. Já no prefácio, o autor justifica a relevância de estudos sobre a questão devido ao seu caráter crucial na constituição do sujeito e pontua, como na maioria das formulações pioneiras, as perspectivas que influenciam o campo de investigação, dando a expressão de sua diversidade: as abordagens que tratam a sexualidade na sua relação com dinâmicas de parentesco e de família, as que a associam à formação da identidade individual e social, ou as perspectivas que tomam sexualidade como expressão de desejos ou ainda como atividade e comportamento. Mesmo que se tenha que considerar tal variedade acompanhada, inclusive, de diferentes panoramas e configurações teóricas, uma preocupação recorta as diversas perspectivas: aquela que se dedica a lidar com a fronteira tênue em que se confrontam o exercício da sexualidade, no marco de sua significação como liberdade individual, e a violência, conotada como atos abusivos passíveis de condenação moral, social ou de criminalização.

Neste artigo, pretendo avaliar o debate sobre violência e gênero, apontando suas conexões e articulações com concepções sobre sexualidade e, em particular, sobre o erotismo. Ao examinar a literatura feminista, encontrei uma das convenções que, a meu ver, ilustra bem as possibilidades e paradoxos da conexão entre esses termos: o erotismo, visto da perspectiva de gênero, constitui prazer e perigo (Vance, 1984). Perigo, na medida em que é importante ter em mente aspectos como o estupro, abuso e espancamento como fenômenos relacionados ao exercício da sexualidade. Prazer, porque há uma promessa na busca de novas alternativas eróticas em transgredir as restrições impostas à sexualidade tomada apenas como exercício de reprodução.

Proponho chamar essa relação tensa entre prazer e perigo de limites da sexualidade. Tais limites indicam, de fato, um processo social bastante complexo relativo à ampliação ou restrição de normatividades sexuais, em particular, sobre a criação de âmbitos de maior tolerância e os novos limites que vão sendo impostos, bem como situações em que aquilo que é considerado abusivo passa a ser qualificado como normal. A maior contribuição da antropologia tem sido a de apontar que essa fronteira é montada, considerando a multiplicidade de sociedades e de culturas, por hierarquias, mas também pela negociação de sentidos e significados que resultam na expansão, restrição ou deslocamento das práticas sexuais concebidas como aceitáveis ou"normais" e aquelas que são tomadas como objeto de perseguição, discriminação, cuidados médicos ou punição criminal.

A importância desses estudos em temas como violência e sexualidade é a de reunir uma vasta documentação e montar um repertório de práticas socioculturais que ajudam a contestar afirmações baseadas em categorias como essência ou natureza humana. No caso da violência, esse material traz evidências de que os atos qualificados como tal obedecem a normas ou regras, fazem parte da cultura, ou mesmo, que a eles correspondem determinadas funções sociais (isso quando consideramos determinadas formulações do funcionalismo clássico). Estudos recentes sobre terrorismo na Irlanda do Norte (Feldman, 1991), sobre vítimas de movimentos nacionalistas, sobretudo, mulheres na Índia (Das, 1990) ou entre sobreviventes de tortura no Sri Lanka (Daniel, 1996) trazem etnografias baseadas em uma nova antropologia do corpo que o associa às inscrições e signos de poder.

Vale considerar também as teorias feministas sobre violência considerada a partir da assimetria sexual e de gênero (Lauretis, 1997; Moore, 1994; Saffioti, 1994; Gregori, 1993, 2004; Gregori & Debert, 2008). Essas são contribuições relevantes que mostram como as idéias que temos sobre violência, gênero e pessoa estão relacionadas à concepção ocidental e moderna de natureza humana, que deve ser problematizada. De fato, essas pesquisas revelam a dificuldade de se definir como violência os significados atribuídos em muitas e diferentes sociedades a certas práticas, mesmo aquelas em que a dor física é infligida.

O mesmo esforço de relativização está presente nos estudos que tratam da sexualidade, sobretudo os que dialogam com as noções elaboradas por Michel Foucault (1977). Esse autor forneceu instrumentos analíticos importantes para a"desnaturalização" da sexualidade, cujo atributo de natureza foi consolidado pelos saberes normativos, entre os quais os elaborados pela sexologia, que operam, ao lidar com os limites, com noções como doença, patologia, anomia, perversão etc. Ao imprimir uma ênfase histórico-cultural, Foucault tomou a sexualidade como dispositivo, ou melhor, como uma"construção social" composta por uma economia de poder articulada à emergência de uma nova instância de verdade do sujeito na modernidade. Essa nova economia, o biopoder, condiz com a introdução da vida no âmbito das normas e controles sociais e, por meio dela, a preocupação com a população, a morbidade, a saúde etc. Até por ter se dedicado ao exame das configurações normativas e seus temas a partir de instituições como prisões, clínicas psiquiátricas e processos periciais judiciários, Foucault circunscreveu a noção de dispositivos da sexualidade no marco da produção de saberes institucionais e técnicos, e viu neles a consolidação da noção moderna de"sexo", esta unidade fictícia – Judith Butler chama-a de ideal regulatório – ou matriz de significados, significantes e práticas cujo sentido implica a articulação entre a anatomia do corpo, a biologia dos sexos, os comportamentos associados ao gênero e o desejo.

As abordagens antropológicas que seguiram essa perspectiva dão destaque ao conjunto de práticas, representações e atitudes relacionadas à constituição dos sujeitos e, como tal, particular a uma cultura, a uma sociedade e a um período histórico. Importante enfatizar que, além da trilha aberta por Foucault, as contribuições antropológicas sobre sexualidade têm estabelecido rica interlocução com as teorias feministas, outro campo relevante que, desde a década de 70, contesta a relação, tomada como natural, entre sexo e reprodução (Vance, 1984; Heilborn, 1999; Piscitelli, 2004).

Uma das formulações teóricas mais importantes dos estudos recentes foi sugerida, primeiramente, pela antropóloga Gayle Rubin (1975) ao afirmar que nos pressupostos que dão base ao pensamento clássico sobre a organização social da atividade sexual humana encontra-se a noção de um sistema com dois gêneros dicotômicos (masculino/feminino), criados a partir do sexo biológico, e que regula, constrange e limita arranjos sexuais na base da heterossexualidade obrigatória. Os limites da sexualidade, portanto, são inteligíveis apenas se concebidos em contextos precisos e, no que concerne às práticas ocidentais e suas normatividades, é preciso considerar o peso desempenhado pela heterossexualidade, tomada como modelo compulsório. A conceituação de gênero que me parece a mais rentável na interface com a violência foi proposta por Judith Butler (2004a) em seus livros mais recentes nos quais ela formula suas idéias em termos foucaultianos: as regulações de gênero são organizadas em um aparato de poder por meio do qual a produção e normatização do masculino e do feminino tomam lugar de formas variadas, como por exemplo, hormônios ou cromossomos. Normas não são o mesmo que regras ou leis. Elas operam nas práticas sociais e, ainda que possam ser delas separadas por razões analíticas, não se pode apreender as normas fora de contextos concretos e de modo abstrato. Elas podem ou não ser explícitas. Segundo a autora, elas freqüentemente permanecem implícitas nas práticas sociais, difíceis de discernir ou decifrar. Podem ser observadas com maior clareza na dramaticidade dos efeitos que produzem. Gênero, nesse sentido, é um aparato feito nas práticas sociais que materializam os corpos e instituem constrangimentos, mas está longe de ser algo que conduz a uma estabilidade definitiva. Tal aparato, nesse sentido, deve ser visto como um conjunto de dispositivos que criam desigualdades de poder, mas também e simultaneamente, ele é estrutura aberta às transformações. Como bem assinala Butler, gênero é uma prática de improvisação em um cenário de constrangimentos. Além disso, não há risco nessa formulação às tentações modernas que conduzem ao substantivismo e aos essencialismos: ninguém faz o gênero sozinho, ele implica uma relação, uma socialidade.

No exame dos estudos recentes no Brasil feitos nessa interface entre violência e sexualidade, encontrei abordagens com ênfase em três diferentes aspectos: em primeiro lugar, os estudos que tratam dos limites da sexualidade ao investigar práticas sexuais tomadas como abusivas, merecedoras de sanções e punição; outra vertente de pesquisas se dedica a acompanhar e discutir as ansiedades geradas pelas práticas sexuais no âmbito da moralidade, em particular, ao debate criado em torno do que Rubin (1984) qualificam como pânico sexual; e, finalmente, estudos que focam as dimensões que articulam o prazer ao perigo envolvidos na sexualidade ou, em termos mais precisos, que indagam sobre a importância da transgressão para o erotismo.

Os estudos com perspectiva antropológica que investigam os limites, atentando para os abusos sexuais e para o modo como são tratados pelas instituições sociais, são desenvolvidos em meio a um esforço mais amplo de apreender como os atos se transformam em autos no âmbito da justiça (Corrêa, 1983; Ardaillon e Debert, 1987; Vargas, 1997; Carrara, 2000). No caso dos homicídios em que as vítimas são mulheres, objeto dos primeiros estudos nessa direção no Brasil, as motivações alegadas, bem como as circunstâncias descritas, circunscrevem o crime passional cometido em nome da honra em que há claramente a pressuposição de perda de controle sobre a sexualidade feminina. Nesse sentido, mesmo não fazendo parte do leque de situações qualificadas como abuso sexual, assiste-se a toda uma fabulação de natureza judiciária no tratamento de crimes cometidos contra mulheres que expressa e reproduz prescrições relacionadas não só à divisão sexual de papéis na família, como a normatividades relacionadas ao comportamento sexual adequado que variam ao considerarmos os marcadores de gênero. Em relação aos crimes sexuais, as pesquisas antropológicas mais recentes mostram que a ausência de facticidade, usual nesses casos em função da falta de testemunhos oculares, é compensada pelas descrições e a montagem do"fato" através do recurso que focaliza a identidade dos envolvidos e seu comportamento classificado em termos estereotipados. Nesse caso, desloca-se da facticidade do crime para a facticidade das identidades e, em particular, para o bom ou mau comportamento da vítima (Vargas, 1997).

Importante assinalar que, no debate que envolve temas como sexualidade, seus limites e os direitos sexuais, assiste-se, atualmente, a um certo deslocamento e, por vezes, disputas de significados para qualificar práticas sexuais anteriormente valorizadas de modo distinto. É o caso, por exemplo, da tolerância cada vez maior em relação ao adultério, à masturbação, à prostituição, à pornografia e ao homoerotismo, acompanhada de uma condenação, agora com conotação legal, do assédio sexual, da pedofilia ou do turismo sexual (Piscitelli, 2004; Vianna, 2004). Na negociação dessas alterações, a partir da ação do feminismo, dos movimentos gays e lésbicos, mas também dos movimentos de defesa de crianças e adolescentes, notamos a intervenção da busca de uma maior liberação da expressão e da escolha sexual, ou numa direção inteiramente distinta, a emergência de novas ansiedades relacionadas ao que se configura como limites aceitáveis, indicando uma espécie de pânico sexual. No caso do feminismo, essas ansiedades derivam de uma tendência radical que concebe a liberação sexual como mera extensão dos privilégios masculinos. Essa linha criou a retórica antipornográfica baseada em uma análise rígida sobre as assimetrias de poder. Catherine Mackinnon (1980), uma das suas principais teóricas, afirma que as relações sexuais são inteiramente estruturadas pela subordinação, de tal maneira que os atos de dominação sexual constituem o significado social do"homem", e a condição de submissão, o significado social da"mulher".

Outras tendências feministas, gays e lésbicas criticam essa concepção determinística, bem como lutam contra restrições ao comportamento sexual das mulheres. Tais vertentes são ligadas ao movimento de liberação sexual dos anos 60 e têm produzido estudos e práticas inovadoras relativas ao prazer e às escolhas sexuais. Para Rubin (1984), a inter-relação sexualidade-gênero não pode ser tomada pelo prisma da causalidade, nem ser fixada como necessária em todos os casos. Nesse sentido, ela adota uma posição de aliança com as minorias sexuais e elabora as bases de um novo repertório de conhecimentos sobre sexualidades não circunscritas ao casamento heterossexual. Conhecer e defender as minorias sexuais (aquelas que adotam as práticas menos valorizadas ou até proibidas) corresponde à tentativa de expandir as fronteiras do que é aceito por meio da legitimação social de que o prazer não apenas libera, como também emancipa. Uma das interpretações sobre essa luta pela ampliação dos limites da sexualidade está ancorada na consolidação de valores hedonistas nas sociedades de mercado globalizadas (Giddens, 1993). Outras, como as apresentadas por Rubin (1984) e Butler (1997), apostam menos no poder compassador do individualismo contemporâneo e mais na capacidade de transgressão que essas práticas sexuais não sancionadas têm não apenas na contestação de normas de sexualidade e gênero, mas também na criação de novas identidades coletivas.

Erotismo: êxtase e transgressão

A articulação entre prazer erótico e transgressão está na base da definição de erotismo de Georges Bataille, para quem o êxtase sexual emana"da dissolução dessas formas da vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que nós somos" (Bataille, 1987, p. 17). Tal presunção pode culminar em exercícios metafóricos ou literais da violação – no sentido mesmo de agressão – de corpos. Essa noção está difusa ainda hoje e, como mostram os estudos etnográficos, passa a ser estratégica para pensar muitas práticas, objetos e performances no erotismo contemporâneo que aproximam o prazer da dor e investem em relacionamentos sadomasoquistas. Autor exemplar para entender aspectos ainda presentes e que demandam estudos no repertório da pornografia contemporânea, Bataille propõe o nexo entre violência e êxtase erótico. Contudo, sua teoria ainda preserva, e até consagra, o dualismo e a polarização entre atitude masculina/ativa e atitude feminina/passiva, cujos efeitos sobre a problemática de gênero ainda estão por ser examinados.

Sigamos com cautela o desenrolar de suas idéias. Já na primeira frase do livro, ele anuncia:"Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte" (ibid., p. 11). No entender de Susan Sontag, o tema principal deste autor não é o sexo, mas:"É para as gratificações da morte, sucedendo e ultrapassando as de Eros, que toda busca verdadeiramente obscena se dirige." (Sontag, 1987, p. 64). Em vez de um significado puramente negativo ou aniquilador, o sentido da morte é empregado em suas especulações para evocar o limite de dissolução das identidades sociais, bem como das matérias corpóreas. A morte visa transformação e uma espécie de comunhão de seres no cosmos mediante, sobretudo, a transgressão do que possa vir a remeter à vida regular.

Para ele, existem três formas de erotismo: o dos corpos, o dos corações e o sagrado. Para além de suas diferenças e inflexões singulares, o que está em questão em todas elas é"substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda" (Bataille, 1987, p. 15).

No caso do erotismo dos corpos, sua argumentação inclui termos fisiológicos e estabelece uma espécie de analogia entre os movimentos de encontro e fusão entre ovo e espermatozóides, bem como o intercurso sexual entre um homem e uma mulher. As imagens biológicas parecem servir para expressar essa busca que impõe movimentos de ruptura que preparam os seres para o prazer e, sobretudo, para o êxtase. Três ações são decisivas dentre tais movimentos: o desnudamento, a obscenidade e a violação. O desnudamento é relevante no que leva ao despudor: a transgressão de tudo aquilo que constitui o estado normal dos parceiros, ou, em seus termos, o estado fechado ou estado de existência descontínua. A nudez anuncia e é emblema de um processo de desapossamento, fundamental para o sentido do erotismo – levar a um estado em que os envolvidos não sejam mais seres descontínuos, uma fusão na qual eles deixam de ser parceiros, ou ainda:"Uma fusão onde se misturam dois seres que ao final chegam juntos ao mesmo ponto de dissolução." (ibid., p. 17). A obscenidade (xingamentos, vulgaridades) expressa o canal secreto a partir do qual os corpos se abrem – uma desordem que perturba a"posse de si", entendida por ele como a individualidade durável e afirmada. A violação (tanto a penetração quanto as agressões) completa as rupturas: ao acentuar o confronto, ela prepara a formação de um novo tipo de enlace no qual as diferenças entre os dois corpos convergirão para estimular o prazer – há a passagem de um estado de divergência para um de convergência.

Bataille afirma, e esse aspecto não é meramente formal, que no movimento de dissolução dos seres a parte masculina realiza um papel ativo e a parte feminina um papel passivo. Aliás, segundo sua descrição, a parte feminina seria a primeira a ser dissolvida enquanto ser constituído, sendo seguida pela parte masculina num movimento conjunto de fusão. As mulheres são, no seu entender, objetos privilegiados do desejo em função justamente de sua passividade, entendida como uma espécie de"isca" que atrai a agressividade do homem. Inegavelmente, é preciso considerar que estamos diante de digressões puramente especulativas e que o propósito, antes de configurar intenção normativa, expressa o exercício de colocar em questão máximas morais para precisamente apontar a fragilidade de noções como a autodeterminação do sujeito e o racionalismo que o define e consagra. O interesse pela transgressão é, no meu modo de entender, o lado contestatório e atual dessa teoria de Bataille.

Porém, parece fundamental submeter algumas de suas noções a um escrutínio crítico, pois ainda que admitamos que o autor está preso ao seu tempo, trata-se aqui de ampliar o horizonte de discussão sobre os efeitos do erotismo sem cair nas armadilhas normativas de gênero e sexualidade. Em primeiro lugar, mesmo reconhecendo que as reflexões de Bataille não possam ser reduzidas a um fácil determinismo biológico, as analogias empregadas por ele entre as imagens fisiológicas da reprodução sexuada e as identidades de homens e mulheres sugerem o aprisionamento de suas especulações (e até imaginações) ao modelo que toma a diferença sexual em termos do dimorfismo sexual, cujos efeitos são hoje bastante conhecidos sobre o controle da sexualidade feminina, sobre a definição de patologias sexuais associadas à homossexualidade e, mais abrangentemente, como justificativa para a submissão das mulheres.

Segundo Thomas Laqueur (1997), tal modelo, vindo dos desenvolvimentos de pesquisas sobre anatomia e biologia desde o século XVIII, implicou a reconstituição radical da sexualidade feminina – e, mais genericamente, humana. Até aquele momento, o corpo feminino era concebido como derivado do masculino, existindo entre eles diferenças de hierarquia e de grau. O dimorfismo sexual significou a incorporação do princípio de que os corpos masculino e feminino são diferentes, incomensuráveis e que essa diferença, além de oposta, é complementar e necessária para as exigências não só da reprodução sexual, como também da formação de nossa identidade psíquica e de nossos desejos. Um dos aspectos remarcados por Laqueur é que houve uma interessante simultaneidade histórica entre a elaboração do modelo dimórfico para as diferenças sexuais e a consagração política do liberalismo. De fato, como lembra o autor, a resistência às demandas das mulheres em função do universalismo prometido pelas revoluções humanistas foi acompanhada pelo desenvolvimento de uma"antropologia física" bastante elaborada. Em vista dos postulados liberais de que os corpos não são destituídos de sexo, mas indiferenciados em relação à capacidade de vontade e de razão, como derivar a real dominação dos homens sobre as mulheres? O dilema foi sendo resolvido no tempo com a elaboração e consolidação de teorias – em campos disciplinares diversos – que estabeleciam os limites da igualdade apoiados em diferenciações biológicas.

Nesse sentido, a contaminação do modelo do dimorfismo sexual sobre a imaginação de Bataille traz efeitos que não são desprezíveis, sobretudo, para se pensar quais normatividades a sua teoria sobre o erotismo visava transgredir e quais foram mantidas intactas. O ponto que chamo atenção, mas também Piscitelli (2008), é que há nas idéias desse autor um essencialismo baseado, sobretudo, no uso e abuso de referências relativas às normas binárias de gênero, e como assinala Braz (2008), uma disposição claramente heteronormativa.

As teóricas feministas pós-estruturalistas que tratam das interfaces entre gênero e sexualidade não mencionam Bataille, o que intriga. A única exceção é Jane Gallop (1981) que, ao apresentar uma interessante releitura dos textos de Sade, sugere uma revisão das interpretações feitas por Roland Barthes e por Georges Bataille. Para ela, Barthes (1979) confina a análise sobre Sade a um princípio de delicadeza, estruturalista em seu método e abrangência, não conseguindo admitir a violência que há nesses escritos. E violência no sentido de ruptura com uma ordem racional ou lógica. Já a leitura de Bataille – em sua opinião –, não oferece resistência à violência. Contudo, toda a interpretação passará por uma concepção que enfatiza a dissolução de laços sociais e a soberania absoluta do sujeito no tocante ao desejo. Gallop discorda, vendo nos escritos de Sade um sem número de referências a alianças entre libertinos, como na Sociedade de Amigos do Crime. Bataille – tomado como o mais óbvio descendente de Sade – apresenta, segundo essa crítica, uma leitura perpassada pela fantasia de soberania. E essa fantasia também está presente na análise que ele faz sobre o erotismo. Tal fantasia supõe que o sujeito desejante busca o êxtase na negação das posições sociais, na negação da fala (o silêncio seria a condição especial do libertino), numa fusão em que as diferenças entre parceiros sejam superenfatizadas para, em seguida, serem dissolvidas, como se fossem negadas.

O êxtase, estado em que o ser experimenta estar"fora de si", é uma idéia que, antes de indicar uma posição de soberania ou de transcendência, implica um laço relacional ou, mais precisamente, segundo Butler (2004b), a noção instigante de"constituir-se", bem como"perder-se", em face do outro. A incompletude do ser se mostra com bastante nitidez, segundo ela, em experiências concernentes à agonia (ou à melancolia, mediante perdas) e naquelas que envolvem desejo. Nesses casos, ninguém permanece intacto, o que traz como conseqüência, em seus próprios termos:"As a mode of relation, neither gender nor sexuality is precisely a possession, but, rather, is a mode of being dispossessed, a way of being for another or by virtue of another." (Butler, 2004b, p. 24).

Essa idéia é bastante rentável para pensar as transgressões no marco do erotismo: não se trata apenas de postular que o sujeito não é composto por fronteiras estáveis – e nessa medida, relacional –, mas de reconhecer o movimento dinâmico entre normas, escolhas e mudanças. Ao defender a abordagem relacional, concordo com Butler que o propósito não reside em contestar a evidência das normas nem em tornar obsoleta uma noção como autonomia. Significa apenas não aceitar as normas como destino inescapável, como uma natureza, e autonomia como autodeterminação. Pensar sobre gênero e sexualidade – por meio de experiências e referências eróticas – torna imprescindível tratar das normas, âmbito que nos constitui sem que possamos inteiramente escolher, mas que paradoxalmente nos fornece o recurso e o repertório para as escolhas que temos e fazemos.

Além disso, ao lidar com a sexualidade nas suas expressões eróticas, estamos diante de experiências que mobilizam fantasias e fantasmas: situações, referências, imagens, fragmentos de memória e sensações que, mesmo sendo gestados em torno e no campo das normatividades, apontam para além delas. As fantasias não são o oposto da realidade. Elas nos interessam porque, segundo Butler, em vista delas estamos diante dos limites da realidade ou daquilo que implica o seu"exterior constitutivo":"The critical promise of fantasy, when and where it exists, is to challenge the contigent limits of what will and will not be called reality." (Butler, 2004a, p. 29). Assim, fantasias são relevantes para a reflexão antropológica e não só para as ciências do espírito ou da mente porque elas expõem a contingência das normas de sexualidade e gênero. Esse esforço é relevante para pensar, de um lado, sobre a realidade ou, em outros termos, para indagar sobre as normas que são definidas socialmente como constitutivas do real; de outro lado, a contingência abre para uma investigação sobre as mudanças, quando não até para a superação de certas desigualdades implicadas em marcadores de diferença – como gênero e sexualidade – que, antes de poderem ser considerados estáveis ou definitivos, são termos abertos à imaginação e à contestação.

S/M

Um estudo pioneiro no Brasil que articula modalidades de erotismo e suas expressões transgressivas foi o de Nestor Perlongher sobre a prostituição viril. O Negócio do Michê (1987) apresenta uma etnografia brilhante e rica que aponta experiências sociais envolvidas em uma dinâmica complexa entre normas de gênero e sexualidade e suas contestações, no âmbito do mercado. É nesse universo de relações que assistimos expressões do que o autor chama de"fugas desejantes ou libidinais", bem como, e simultaneamente, uma diversidade de dispositivos instaurados para controlar ou neutralizar os perigos das fugas.

Vários estudiosos hoje, em nosso país, seguem essa influência e se dedicam a estudar as novas formas de sexualidade, tentando decifrar as convenções eróticas e, por meio delas, questões como a diferença e a transgressão. Estamos convencidos de que não é possível estudar apenas aqueles universos institucionais de produção dos saberes próprios à consolidação da"sociedade burguesa" dos séculos XVIII e XIX, como foi inicialmente realizado por Foucault, cuja ênfase era a de decifrar a produção de normatividades pelos universos técnicos e institucionais. Consideramos estratégico investigar as práticas e as dinâmicas que envolvem os erotismos, em meio a um universo que nos parece absolutamente central no cenário contemporâneo: o mercado. Além da constatação empírica de que no âmbito das novas alternativas eróticas esse universo é significativo, partimos do pressuposto de que ele constitui hoje uma figura das mais intrigantes e paradoxais. Nesse cenário, reúnem-se atualmente experiências e práticas que alternam, de modo complexo, esforços de normatização e também de transgressão. Tal complexidade paradoxal não pode ser tratada, parece-nos, a partir de uma abordagem vulgarizada do marxismo que apenas denuncia, e de forma maniqueísta, as desventuras alienantes e instrumentalistas do mercado.

Interessa refinar, nesse caso, os instrumentos analíticos referentes a operação de mercado e remarcar as noções já assinaladas por Peter Fry (2002) ao tratar dos produtos de beleza para a população negra, bem como a maior participação de modelos negros na publicidade brasileira. O autor analisa o modo como os produtos entram no mercado, indo contra as perspectivas que tomam os consumidores como vítimas passivas, ou ainda, aquelas que assinalam que os fabricantes seriam meros realizadores dos sonhos ou desejos dos consumidores. Essa produção é organizada para explorar todas as possíveis diferenciações sociais mediante uma motivada diferenciação de bens. Desse modo, Fry, ao lidar com os novos segmentos de mercado para os negros, toma cuidado de não presumir que estejamos diante de algo que apenas possa ser visto como resultante de uma demanda da classe média negra. De fato, o autor compreende tal processo como constituinte da formação dessa classe média.

Um dos segmentos do mercado erótico contemporâneo que interessa particularmente ao desenvolvimento das reflexões deste artigo é o das práticas sadomasoquistas. A literatura sobre esse tópico é bastante vasta, sobretudo nas abordagens relativas ao âmbito da psicanálise e dos estudos sobre sexualidade, no marco da tradição aberta pela sexologia. Também não podemos desprezar as perspectivas vindas do campo da crítica literária e dos estudos filosóficos que descortinam os aspectos constitutivos da literatura da libertinagem, sobretudo, a que ganha destaque entre os intelectuais franceses responsáveis pela elaboração, a partir da leitura das obras de Sade, da teoria sobre o erotismo e que ainda hoje constitui a base analítica sobre esse tema.

Além dessas contribuições inspiradoras, sobretudo pela sua riqueza filosófica, existe um debate sobre o sadomasoquismo, relevante aos propósitos antropológicos, no marco das identidades e das minorias sexuais. Trata-se de uma variedade expressiva de livros e artigos, sobretudo, na literatura norte-americana, sobre essa dimensão do fenômeno, principalmente a partir de 1980. Tal bibliografia define o sadomasoquismo como uma espécie de subcultura que, antes do que revelar patologias individuais, será vista como exercícios simbólicos do risco social (McClintock, 1993). Suas expressões mais antigas podem ser encontradas desde o século XVIII na Europa, mas ganham a conotação de minorias sexuais, sobretudo, a partir dos anos 70 do século XX: nesse período, passam a ter visibilidade no cenário político grupos S/M gays e lésbicos (como o Samois), paradoxalmente, criados no mesmo momento em que apareceram alguns grupos feministas contrários à pornografia e ao sadomasoquismo (como o Women Against Pornography). Os estudos a respeito indicam que não é possível entender a retórica desses grupos S/M e suas propostas práticas sem levar em conta os contenciosos com o movimento em torno da New Right, em relação de contra-posição ao Feminismo Radical e, tendo como interlocutores, Freud e Richard Von Kraft-Ebing, o sexólogo que cunhou, no final do século XIX, o sadismo e masoquismo como psicopatologias.

Ann McClintock (2003) e Lynda Hart (1998) trabalham o sadomasoquismo no registro dos exercícios simbólicos mobilizados, seja como manifestações subculturais (McClintock), seja como performances (Hart). Seus estudos operam no registro do teatro e analisam variadas expressões S/M como escolhas e práticas sexuais que só podem ser inteligíveis como encenações que, na verdade, colocam em suas cenas, nos cenários e em seus personagens aspectos que fazem parte das contradições que emergem no interior das dinâmicas do poder social. Menos do que formas de cópia ou reprodução do que constitui o cerne da sexualidade heterossexual modulada como norma pelo patriarcalismo – principal crítica apontada pelas feministas anti-sadomasoquismo –, estas autoras sugerem que consideremos o seu lado contestatório. Seguindo tal perspectiva, é interessante analisar o S/M comercial, o lesbianismo S/M e as manifestações S/M entre gays masculinos, como alternativas que, no limite, problematizam os modelos que supõem como naturais, inatas ou normais as fronteiras que demarcam as diferenças entre homens e mulheres, em particular, entre comportamento sexual masculino (ativo) e feminino (passivo), bem como as fronteiras que separam o prazer da dor, o comando e a submissão. Trata-se de experiências que ousam lidar com o risco social, ou melhor, com aqueles conteúdos e inscrições presentes nas relações entre a sexualidade e as suas assimetrias em termos de gênero, de idade, de classe e de raça. McClintock chega até a afirmar que o S/M performa o poder social como um script, de modo que as dessimetrias que constituem tal poder passam a ser encenadas, teatralizadas, tratadas como contingentes e sujeitas a mudanças e novas inflexões. Nesse sentido, para ela, a"economia" do S/M é uma economia da conversão: escravo em mestre, adulto em criança, dor em prazer, homem em mulher e, assim por diante e de novo. Esta autora analisa em especial o S/M comercial e, com base em depoimentos de trabalhadoras sexuais que vendem seus serviços como dominatrix, mostra que, nesse cenário, é mais comum encontrar no cliente homem aquele que quer ocupar a posição de escravo. Ainda que tenhamos que considerar as outras formas de S/M comercial em que mulheres, como clientes e como trabalhadoras sexuais, estejam na posição subalterna, ela levanta uma intrigante questão: é freqüente que os clientes-escravos paguem muito dinheiro para limpar o chão, lavar as roupas sujas, esfregar as paredes de suas dominatrizes. Essa espécie de"degradação", baseada na domesticidade e presente nas encenações, inverte a equação que separa a esfera masculina do mercado e a esfera feminina do lar, sendo o cliente, homem, aquele quem paga para realizar as tarefas"sujas" do lar, trabalho normalmente não pago e executado pelas mulheres, empregadas ou esposas.

Lynda Hart estuda, nos casos S/M entre lésbicas, experiências que ameaçam certas noções das teorias feministas, principalmente as desenvolvidas sobre relações mulher/mulher, que alimentam a idéia da igualdade, ou de um"não poder", como estratégia de libertação. Segundo essa autora, essa forma de S/M, ao trazer nos plays as piores cenas heterossexistas, desafia a definição ética e política envolvida no lesbianismo (sobretudo, a noção de irmandade). Ela chama atenção para o fato de que o componente crucial da relação masoquista é o contrato (o que já tinha sido assinalado por Deleuze, 1983), um acordo sempre formalizado e que pressupõe o consentimento, a reciprocidade e que não afeta os indivíduos fora dos limites de cada encenação. Mesmo nesses termos, ela pondera que esse lado do contrato não deve nos levar a desconsiderar que essas experiências constituem um empreendimento de risco, a partir de atos que implicam negociações delicadas.

Os riscos, bem como as operações de produção de consensualidade e segurança das várias modalidades de S/M, indicam que é preciso empreender esforços para analisar detalhadamente não apenas os vários contextos em que elas se apresentam, mas também as relações sociais e pessoais envolvidas. Pesquisas etnográficas começam a ser feitas no Brasil, acompanhando a difusão e maior visibilidade das práticas sadomasoquistas na última década. Regina Facchini (2008), ao analisar a sexualidade de mulheres na cidade de São Paulo, apresenta uma rica investigação sobre uma rede de adeptos BDSM (bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo, masoquismo). Seu estudo aborda experiências observadas e narradas, e decifra a formação e os contornos de uma comunidade (ou confraria), a partir das intrincadas relações entre as práticas e escolhas eróticas referentes ao BDSM e aquelas que são vividas no mundo cotidiano, fora do clube e distante da Internet, qualificadas por seus informantes como"sexo baunilha". Dessas relações de contraste e oposição, saltam intrigantes considerações sobre normas de gênero e sexualidade. Bruno Zilli (2007) estudou, a partir de sites brasileiros da Internet, o discurso de legitimação do BDSM. Ele mostra como a linguagem e conclusões psiquiátricas do século XIX a respeito das fronteiras entre os comportamentos patológicos e os de natureza moral ecoam nas reivindicações de direitos às identidades BDSM. O advento da Internet, inclusive, é um fator decisivo na difusão dessas práticas em nosso país e, sobretudo, nas interações entre adeptos e a criação de suas comunidades.

Chama atenção o fato de que, no Brasil, essas práticas passaram a ter maior visibilidade em período recente e no marco da expansão do mercado na direção dos produtos e bens eróticos. Tal aspecto delimita, entre nós, um universo singular de relações sociais, bem como de referências, imagens e práticas se comparado à diversidade de expressões S/M nos EUA, visíveis desde os anos 70 do século passado. É preciso lembrar que as variadas alternativas sadomasoquistas em cenário norte-americano tiveram destaque e participaram ativamente nos contenciosos políticos entre diferentes posições feministas, do movimento lésbico e do movimento gay. No Brasil, como salienta Facchini, os adeptos, a discussão e o debate"BDSM não está inserido na agenda política dos 'direitos sexuais', também não está no campo de interesses do movimento feminista" (Facchini, 2008, p. 196). Aqui, o S/M parece ser uma das expressões das novas faces do erotismo e, em particular, daquelas alternativas que estão se desenvolvendo e se difundindo no marco do que tenho chamado de erotismo politicamente correto (Gregori, 2003).

Na investigação exploratória junto aos sex shops para gays e lésbicas em São Francisco, bem como do acompanhamento do debate acalorado sobre feminismo e pornografia, notei a criação de um erotismo politicamente correto protagonizado por atores ligados à defesa das minorias sexuais. As práticas e acessórios presentes do nicho gay e lésbico do mercado erótico de São Francisco indicam a abertura de um campo alternativo que tem permitido ampliar o escopo de práticas sexuais possíveis e, simultaneamente, evita incorrer na reprodução de normatividades de gênero e sexualidade que resultem em objetificação. Ao analisar a emergência dessa nova face do erotismo, salta aos olhos suas implicações mais imediatas: de um lado, o deslocamento do sentido de transgressão do erotismo para um significado cada vez mais associado ao cuidado saudável do corpo e para o fortalecimento do self; de outro, uma espécie de neutralização, domesticação ou ressignificação dos traços e conteúdos violentos envolvidos em práticas sadomasoquistas.

 Âmbito estratégico para a reflexão sobre os limites da sexualidade, as variadas modalidades de experiência S/M introduziram uma retórica, técnicas e rituais sobre o lado"seguro, saudável e consensual" de práticas eróticas que lidam com risco. Mesmo não sendo possível definir genericamente o significado de cada um desses termos, dada a diversidade de modalidades S/M, as tensões entre prazer/dor, domínio/sujeição, fantasia/realidade estão sendo apresentadas, expondo suas articulações contingentes. A preocupação com a segurança e com a consensualidade funciona, segundo Hart (1998) como um ideal. Nenhum desses termos é facilmente acessível ou garantido. Daí o interesse de estudá-los em uma perspectiva dinâmica e comparativa que, em consonância com Butler (1990) e Facchini (2008), tome as experiências S/M como paródias: como práticas que mobilizam e expõem com força dramática, mediante todo um repertório de convenções culturais e sociais disponíveis, as assimetrias de poder, as materializações e corporificações de normas de gênero, de sexualidade, bem como de outros marcadores de diferença como classe, raça e idade. Para além da idéia presente no senso comum de que o teatro não é a vida, tratar essas práticas e decifrar seus enredos, cenas e cenários permite entender – até por seus intrincados paradoxos – as convenções que organizam – também de modo idiossincrático – as relações entre violência, gênero e erotismo.

Nota
Maria Filomena Gregori é doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu/ Unicamp). É autora, entre outros, do livro Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista (São Paulo, Paz e Terra/ANPOCS, 1993) e Viração: a experiência de meninos nas ruas (São Paulo, Companhia das Letras, 2000).