sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Paisagem rural, de Thomé Filgueira

Uma nova ética ou uma bioética para o século XXI.

Maria Antonia de Andrade Dias  
Quando o europeu chegou à América, buscando novas terras e comércio, não valorizou a cultura local dos povos que foram chamados indígenas. Ao contrário, buscou destruí-la, pois achava que quem conquistava tinha o direito de impor sua cultura, sua língua, sua religião, como sempre fizeram os conquistadores ao longo da História. Nem perceberam que esses povos “selvagens” tinham muito o que ensinar. É claro que acabaram adquirindo muitos costumes locais, mas talvez o principal aprendizado, o respeito que os indígenas tinham pela natureza, sabendo conviver com ela e preservá-la, nem sequer foi considerado. O importante era aproveitar as riquezas encontradas, transportando-as para a Europa, visando o enriquecimento dos países e das pessoas envolvidas nesse comércio.


 O homem acreditava que a natureza proveria sempre as suas necessidades, não havendo a menor preocupação com a sua preservação ou com a extinção de várias espécies animais e vegetais. Nessa situação, quem defenderia a natureza? O homem acostumado a ser o centro do planeta buscou desde sempre dominar a natureza para servi-lo, não percebendo que a natureza não é um objeto, uma “coisa”, mas algo vivo e que pode ser ou não parceira da sobrevivência do homem, dependendo da forma como essa relação homem/ meio ambiente é vivenciada.
Passaram-se vários séculos e somente no século XX cientistas começaram a divulgar suas descobertas relacionadas à questões de sobrevivência do planeta e, conseqüentemente, do homem que habita a Terra. Ninguém se preocupou muito na ocasião, talvez por não acreditar na finitude dos recursos naturais e agora, muitos anos depois, estamos vivenciando as conseqüências dessa descrença. Mudanças climáticas, doenças decorrentes dessas mudanças, dificuldades em várias áreas da vida humana e, mais ainda, o perigo de o homem ficar sem água, sem alimentos, enfim, de não sobreviver.

O homem e a ética


 Os problemas relacionados ao meio ambiente cresceram a partir da Revolução Industrial e desde então só se multiplicam. O homem saiu dos campos e veio viver nas cidades. As cidades cresceram para abrigá-lo e a natureza foi sendo devastada: florestas desapareceram, rios foram poluídos, lagoas drenadas, tudo para dar condições melhores de vida a esse homem predador, que se considera o senhor da natureza. Ao assim se considerar, o homem estabelece uma ética que gira em torno de si mesmo, portanto antropocêntrica na sua natureza.
Pode-se definir a Ética como normas de comportamento que regulam a vida em sociedade, ou seja, estabelece formas de comportamento aceitas pelas pessoas que convivem em um mesmo grupo social. Algumas dessas normas são aceitas em qualquer grupo: não se pode matar o outro, não se pode roubar o outro, etc. Apesar dessa aceitação, existem circunstâncias em que essas normas podem ser infringidas e isto é aceito como normal: numa guerra ou em defesa própria o homem “pode” matar o outro. Da mesma maneira, os recursos fornecidos pela natureza são usados de forma descontrolada, desde que gere riqueza; não existe uma ética que defenda os interesses do ambiente natural.

 As pesquisas científicas trouxeram novas tecnologias sem nenhuma preocupação com a possibilidade de causar danos ao meio ambiente. Foram feitos inúmeros testes nucleares, usados artefatos em guerras que prejudicaram a natureza, além de causar inúmeras mortes, rios foram desviados de seus cursos naturais, represas foram construídas e um sem fim de atividades semelhantes foram sendo praticadas sem considerar as conseqüências para o meio ambiente. Os cientistas visando novos conhecimentos e, especialmente os empresários visando cada vez mais lucros, continuam agindo sem pensar na sustentabilidade ambiental.
A Ética, ao longo do caminho, vem sofrendo mudanças, acompanhando as transformações na sociedade; os valores se modificam e até o próprio ser humano deixou de ter um valor intrínseco; ele não vale mais pelo que é e sim pelo que possui. Portanto, o que é valorizado é o dinheiro e o consumo passa a ser altamente estimulado para que as pessoas exibam as suas posses. A aparência agrega mais valor, não importando os meios usados para consegui-la. Caráter, responsabilidade para com o outro, integridade passam a ser valores sem muita importância para a grande maioria das pessoas.

 Nesse contexto, seria importante refletir sobre uma nova ética, uma ética preocupada não apenas com o comportamento humano, mas uma ética também preocupada com a vida em geral: a Bioética.
A natureza e a bioética

Segundo PESSINI (2002), a Bioética é a ética das e nas ciências da vida e do meio ambiente. O mesmo autor comenta que a Bioética é um forte apelo pela dignidade humana e por mais qualidade de vida.

 A bioética se preocupa com os avanços da ciência em geral, com maior enfoque em todas as situações que envolvem a vida, não somente do ser humano, mas de todos os seres vivos que habitam o planeta e, conseqüentemente, o meio ambiente. Portanto, a sobrevivência humana é alvo das preocupações dessa ciência, que chama a atenção para a questão de um compromisso mais global perante o equilíbrio e preservação da relação entre os seres humanos e o ecossistema e com a vida no planeta.
Os povos antigos viam a natureza como algo sagrado e que devia ser temido. Com a evolução do conhecimento, o homem consegue compreender e até prever fenômenos produzidos pela natureza, intervindo de forma muitas vezes desordenada e predatória, o que causou a situação em que se encontra o meio ambiente: modificado e devastado em grandes áreas.

 Para esclarecer melhor os termos natureza e meio ambiente, usados como sinônimos nesse artigo, a autora buscou em DULLEY (2004) uma explicação:
“ambiente no sentido estrito (antropocêntrico) equivocadamente confundido com o meio ambiente humano, limitar-se-ia aos elementos conhecidos da natureza que são indispensáveis para o sistema social produtivo humano e para a sobrevivência da espécie humana, tanto local quanto planetariamente.
É, portanto a capacidade do homem de pensar a natureza, pensada em seu sentido amplo (envolvendo todas as espécies conhecidas), que lhe permite pensar todos os meios ambientes compondo o ambiente. A natureza e o ambiente seriam, portanto, duas faces de uma mesma moeda, sendo que o segundo teria uma conotação mais prática ou de utilidade, não só para o homem, mas também para qualquer espécie”.
O homem, ao criar os espaços urbanos, descobriu novas formas de desenvolvimento, transformando a natureza, sem nenhuma preocupação na sustentabilidade desse desenvolvimento, ou seja, não se preocupou com as gerações futuras, só pensando no momento presente e, principalmente nas questões econômicas. Para ele, a ética só estabelecia normas relativas ao comportamento humano, aos seus valores morais que não consideravam o meio ambiente como parte essencial não só à vida humana, como também a todas as formas de vida do planeta.


 Considerações finais
As mudanças que estão ocorrendo resultantes da destruição da natureza levaram o homem a repensar a sua maneira de viver e a sua qualidade de vida, mas é indispensável que a cultura dos povos desse planeta sofra grandes transformações e busque novas formas de entender e vivenciar o que é essa qualidade. Torna-se essencial não uma nova ética, mas a disseminação dos princípios da bioética, que considera a justiça, a beneficência, a não maleficência e a autonomia como fundamentais para uma vida mais plena de humanidade, ou seja, o homem precisa entender que o seu próximo é também um ser humano e que depende, como ele, do meio ambiente para sobreviver.
Somente a conscientização de todos relacionada ao tamanho do desafio que o planeta está enfrentando poderá contribuir mais profundamente para que se aja com rapidez para salvar o planeta e seus habitantes. GAARDER (2005), diz que falta vontade política e ele está certo. Os dirigentes dos países mais importantes do mundo ainda não adquiriram a consciência de que estão destruindo a vida; continuam somente interessados nas questões que envolvem a economia, esquecendo que sem os habitantes do planeta, a economia deixa completamente de ter importância.


 Enquanto os políticos não agem, faz-se mister que cada individuo habitante desse planeta assuma o seu papel de contribuinte para a sustentabilidade do meio ambiente, educando-se, educando os seus filhos e cobrando dos governos atitudes que considerem o ser humano como o mais importante motivo da existência desse planeta.
As imensas desigualdades entre as classes sociais, a violência, o alto consumismo, a desconsideração pelo outro, que anula a dignidade humana só contribuem para piorar essa situação de catástrofe do planeta.
 Será que o homem vai continuar alheio à sua própria destruição? Esperemos que os cientistas, os filósofos e os políticos se unam aos ecologistas e recriem novas condições de vida e relação do homem com a natureza.

A pobreza social a partir da bioética

Alexandre Andrade Martins

 A pobreza existente no mundo assombra os olhos de quem é sensível ao sofrimento do semelhante. A situação de miséria, de opressão e de exclusão existente no planeta Terra é de causar arrepios, incomoda alguns, mas infelizmente não passa de um arrepio em outros, que motivados pela ganância consumista do capitalismo e impregnados pelo individualismo são indiferentes ao sofrimento alheio. Tragicamente a pobreza marca a realidade de algumas nações, sobretudo na África, na América Latina e na Ásia. Uma marca cravada no coração do planeta, que exige uma atitude capaz de mudar tal situação. A ONU traçou metas para o Desenvolvimento do Mundo na sua assembléia geral de 2002. Seu objetivo principal é reduzir a pobreza no mundo em 50% até 2015. Um grande desafio, um dos maiores da humanidade, para não dizer o maior. Sendo assim, a bioética não pode ficar alheia à dor dos pobres. A bioética, como um saber interdisciplinar que defende a vida e a sua dignidade, precisa contemplar o rosto sofrido da pobreza, pois aí está a grande ameaça à vida no mundo subdesenvolvido.

 Por muito tempo a bioética ficou restrita a uma reflexão ligada ao mundo médico-científico dos países desenvolvidos. Daí nasceu e se consolidou o principialismo, doutrina regida por princípios fundamentais para conduzir as pesquisas envolvendo seres vivos e a aplicação de novos saberes. São eles: principio de beneficência, princípio de não-maleficência, princípio de autonomia e princípio de justiça, que sempre ficou na tangente dos outros três nos países ricos, sendo acionado apenas quando ocorriam expressivas injustiças promovidas na alocação de recursos públicos. O princípio mais reconhecido seria o de autonomia, pois, dentro de uma lógica liberal vivida por esses países, todos têm prioridades sobre si mesmos em vista do bem comum. Esse modelo bioético pouco volta-se para o pobres porque parte de sujeitos sociais em grau de igualdade. O princípio de justiça chega mais próximo da pobreza, mas ficou na tangente.

 A bioética extrapolou as fronteiras do mundo desenvolvido e chegou às nações em desenvolvimento e às pobres. Assim ela chegou na América Latina e na África, mas trouxe consigo o padrão principialista, insuficiente para essas realidades marcadas pela desigualdade, pela injustiça e com grande pobreza. Durante anos, a bioética feita no terceiro mundo não olhou para os pobres com um olhar de sensibilidade e não viu aí um campo de reflexão e atuação, porém isso começa a mudar e atualmente damos destaque para a reflexão bioética feita na América Latina, que começa a dar seus primeiros passos sozinha. Passos em direção aos problemas sociais e aos pobres. O foco principal da reflexão muda, deixa de ser o que acontece "lá em cima" com as pesquisas científicas referentes à aplicação de novas técnicas acessíveis apenas aos ricos (camada muito pequena na América Latina, cuja principal marca é a desigualdade) e volta-se "cá para baixo", onde estão os sujeitos mais vulneráveis, excluídos dos avanços técnico-científicos, porque não podem pagar pela tecnologia e ainda morrem em filas de hospitais (sem atendimento), de fome e de doenças infecciosas facilmente controladas.

 Apenas depois dessa mudança de foco ocorrida na América Latina, podemos falar de pobreza social a partir da bioética, pois antes ela estava em segundo ou terceiro plano para esse saber caracterizado pelo principialismo dentro da elite científica e social. As barreiras de uma bioética elitista estão sendo rompidas, mas ainda de forma tímida. Os pobres ganham centralidade na reflexão bioética, mas, por outro lado, essa reflexão ainda não chegou até eles, não se popularizou, continua nas mãos de uma elite acadêmica e tem pouquíssima força de intervenção social capaz de transformar a realidade desigual e pobre. Os interesses das elites, tanto das políticas como dos ricos e das empresas que financiam pesquisas, não estão voltados para combater à pobreza e promover o bem comum. Ainda permanecem centrados no interesse econômico com base única e exclusivamente no lucro e no poder.

 Os pobres para a bioética são sujeitos concretamente vulneráveis com a vida ameaçada de todos os lados e excluídos dos benefícios proporcionados pelas descobertas técnico-científicas, sobretudo no campo das ciências da saúde, pois não podem pagar pelo saber e não existem políticas públicas eqüitativas capazes de oferecer um bom atendimento de saúde e satisfazer as necessidades básicas para uma vida digna. Os pobres clamam por justiça e libertação. Clamores que fazem a bioética dar mais importância para o princípio de justiça, sem ser principialista, mas que seja capaz de uma intervenção na sociedade orientada para os mais vulneráveis. Assim começa a falar de uma bioética de intervenção, em defesa dos interesses e direitos históricos das populações economicamente e socialmente excluídas do processo desenvolvimentista mundial (GARRAFA; PORTO, 2003 p.35). Os pobres foram excluídos do desenvolvimento histórico do mundo, o qual evoluiu, mas gerou mais pobreza, miséria e exclusão. Uma evolução para poucos, pois seus benefícios são para alguns enquanto a maioria vive aquém do desenvolvimento, vítimas do poder econômico e da injustiça social.

 Em vista da realidade dos pobres, conceitos como equidade, igualdade, justiça social e libertação tornam-se centrais. Reconhece-se e existência clara de uma vulnerabilidade na dimensão social e ela está relacionada à pobreza e à exclusão. No processo desse reconhecimento por parte da bioética latino-americana, temos a contribuição crucial da Teologia da Libertação, uma corrente do pensamento teológico, que para além das fronteiras da religião católica, foi gestada no ventre sofrido dos pobres do continente.Ela fez opção preferencial pelos pobres, mostrou a grande situação de iniqüidade existente no subcontinente americano e que algo precisa ser feito em vista da transformação da sociedade, da libertação dos pobres, oprimidos e excluídos. Uma transformação vinda de baixo, dos meios populares, à luz dos direitos à vida digna, na luta pela libertação e na força da fé. A Teologia da Libertação defende a dignidade dos pobres e vulneráveis e não a faz guiada por proposições abstratas, mas sim apontando os responsáveis pelas mazelas sociais e identificando caminhos para a libertação (SIQUEIRA; PORTO; FORTES, 2007, 175). A bioética nutre-se do diálogo. Assim ocorre no diálogo com a Teologia da Libertação, que temos como fruto o voltar-se para os pobres e fazer opção por eles, por uma vida digna.

 A pobreza é um rosto sofrido a ser contemplado pela bioética no mundo inteiro, sobretudo nos países subdesenvolvidos. Algo que leva a uma intervenção na sociedade para a libertação e a vida digna de todos e não apenas dos ricos. Para a bioética, os pobres são a população vulnerável, a qual precisa ser protegida e para a qual precisa devolver os direitos negados pela evolução da história para então chegarmos a uma maior igualdade e, no mínino, reduzir a pobreza mundial pela metade, como deseja a ONU. Porém igualdade não é ponto de partida, mas, sim, ponto de chegada para a justiça social e a garantia do direito a uma vida digna. A eqüidade vem antes para se chegar à igualdade, pois ela reconhece as necessidades básicas diversas nos sujeitos diferentes e desiguais para atingir objetivos iguais.
 Os pobres, a partir da bioética, são os sujeitos mais vulneráveis concretamente existentes no mundo. Eles são lançados nessa situação marginal, fincando entregues à própria sorte e sofrendo as dores de uma injustiça histórica. Sofrem todo tido de exclusão e opressão; são vítimas da desigualdade e ficam às margens do avanço técnico-científico mundial; estão enfermos e sem atendimento de saúde; vivem em situação precária de moradia, de higiene e de saneamento básico; sofrem com o desemprego e a carência educacional; são descriminalizados pela cor, pela etnia e pelo gênero e nada conseguem fazer, pois, mantidos na ignorância, são manipulados pela ideologia dominante que está nas mãos dos interesses das elites. A bioética precisa intervir nessa realidade, chegar às camadas populares e formar consciência capaz de levar à luta pela dignidade de todos, com sensibilidade, vigor, coragem, esperança e fé.


O cenário Bioético no Brasil

César Augusto Soares da Costa
Que relação poderíamos estabelecer entre ética e vida? Quais seriam os limites de um discurso ético na sociedade contemporânea? Tendo em conta estes questionamentos, próprio de uma época de fragmentação do conhecimento e que submete o sujeito à sua lógica, emerge uma nova possibilidade de discussão em torno ao problema da vida. Pois a Bioética chegou ao Brasil em meados da década de 90. Ainda assim, neste período o Conselho Federal de Medicina (CFM) lança o primeiro periódico na área. Após esta iniciativa se organiza um pensamento comum em torno da questão com a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), tal como a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB).

Hoje percebemos que a bioética compreende o estudo das dimensões morais das ciência da vida, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto mais amplo, sendo uma temática que ganha aceitação em grande parte como uma tentativa de apresentar reflexões em torno de novos dilemas éticos que se apresentam ao mundo científico. O termo surgiu no início da década de 70 nos Estados Unidos, onde Van Potter foi o primeiro a utilizar o neologismo em seu famoso Bioethics: bridge to the future (1971).

 Atualmente a bioética ganha uma surpreende aceitação em escala global, em parte como uma tentativa de apresentar sinais de como lidar com os novos problemas éticos que o mundo técnico-científico levanta ao interferir no mundo da vida. Logo, com as Comissões Nacionais de Bioética, os centros de estudos que se multiplicam, as centenas de publicações na área que emergem e os congressos são uma evidência desta nova percepção. Aqui na América Latina e no Brasil, onde a bioética é mais recente, já possuímos inúmeras iniciativas sobre esta temática. Prova disso, são os enfoques inter e transdisciplinares, onde a bioética procura, na dinâmica de sua execução a interagir com as diversas instância do saber, indo de encontro aos problemas do mundo contemporâneo: da ciência e da vida, do antropológico ao ecológico, do pedagógico ao jurídico, do biológico ao social, do humanístico ao transcendente. Isto significa, novos tempos para a construção do saber!
 Depois de pouco mais de quarto de século do aparecimento desta nova “área” vista como ciência ou movimento intelectual como alguns a denominam, a bioética se apresenta sob vários paradigmas, característicos da fragmentação ética reinante na sociedade chamada de pós-moderna. Vislumbrando o surgimento de temas éticos, que tratam das questões primordiais ligadas ao início da vida, do desenvolvimento da pessoa, aborto, eutanásia, doação de órgãos, paternidade responsável à temas como políticas de população, engenharia genética, ecologia, saúde e efetivação da cidadania, nos questionamos: o que nos aguarda no próximo milênio e qual a contribuição que as diversas áreas do conhecimento podem dar em termos de uma reflexão aberta ao debate epistemológico contemporâneo? Eis o ponto de partida para uma discussão responsável.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

D'África

Jonas, personagem de Mia Couto:

“Desculpe, a franqueza não é fraqueza: o marxismo seja louvado, mas há muita coisa escondida nestes silêncios africanos. Por baixo da base material do mundo devem existir forças artesanais que não estão à mão de serem pensadas”.
 

Itan: histórias do sistema oracular jeje-nagô

Quando os negros foram trazidos da África para o Brasil pelo sistema de escravidão, consigo trouxeram também um conhecimento amplo que sustentava suas relações entre si, e possibilitava uma compreensão do universo e da vida totalmente diferente da cultura da Europa. O sistema de exploração de braço escravo fez com que os negros oriundos da África Ocidental, principalmente do Golfo de Benin, terminassem por aportar na América. Por mais discriminados e isolados de seus conterrâneos, fundamentos de sua cultura sobreviveram também no Brasil. Isso se deve em grande parte ao fato de eles não separarem a vida cotidiana das práticas de re-ligação com o divino. Entre os inúmeros fenômenos das culturas importadas da África, o sistema oracular, através do qual se consultava as divindades, era de importância fundamental, uma vez que a convivência diuturna entre criadores e criaturas era fenômeno evidente entre os africanos.

 Um dos sistemas da consulta ao oráculo era o jogo de Ifá, constituído de 16 sinais (odu) básicos, com várias histórias (itan) que configuravam cada um deles. As histórias, porém, encerravam princípios de ética e moral, através dos quais se estruturavam e se sustentavam as relações entre os humanos e os divinos e também dos humanos entre si. Assim, pessoas, animais, e até plantas se configuravam verdadeiros personagens, portadores de qualidades e defeitos, nas histórias que serviam de base à leitura e interpretação do odu. Tendo em vista que o conteúdo de cada odu abarca inúmeras histórias, o sistema exigia uma memória excelente, além da capacidade em atinar qual das histórias fazia sentido em relação à pergunta feita pelo consulente. Daí porque os sacerdotes de Ifá, normalmente, em África, tinham uma vida de certo recolhimento e dedicavam sua existência aos estudos de tal conhecimento.

 
No Brasil, por força do sistema escravagista que se negou estupidamente a reconhecer os valores das várias culturas africanas, os sacerdotes do culto a Ifá, os babalaôs, não sobreviveram. Em conseqüência, o jogo-de-búzios se popularizou, substituindo o jogo do opelé de Ifá. Ocorre, porém, que o jogo-de-búzios é oriundo do jogo do opelé e conserva a prática da leitura dos odu. Assim, criou-se uma possibilidade de sobrevivência do sistema oracular e suas histórias elucidativas. Um outro fator a considerar também é que, por força do contexto cultural construído no Brasil colônia, também o sistema de origem européia adotava as histórias infanto-juvenis para transmitirem fundamentos de ética e de moral tão necessários em qualquer sociedade humana. Por isso mesmo, muitas histórias do sistema oracular passaram a fazer parte do repertório contado nas varandas da casa-grande, na roda do terreiro das fazendas ao luar, nas senzalas. Evidentemente, um sem número delas se perdeu com o passar do tempo, enquanto outras se firmaram e constituem atualmente parte integrante do cabedal cultural do Brasil. E as histórias², principalmente aquelas em que os personagens são apenas os humanos, os contos, as narrativas tão bem se integraram ao patrimônio brasileiro que, para a maioria, já não se guarda mais a memória de sua origem. Abaixo um exemplo de um ITAN.

A JACA MOLE

 Oxalá amanheceu com vontade de viajar. Olhe que isso é uma raridade acontecer. É tão raro, que os outros orixá atenderam, de imediato, ao chamado dele para participarem. Saíram de madrugadinha. Oxalá é assim: só começa as coisas antes do raiar do dia. E lá se foram, em fila indiana. Todo mundo andando sem pressa, pois Oxalá é lento, vagaroso e só anda em último lugar.

 Iansã, acostumada com a agonia de sua tempestade, foi ficando impaciente. Olhava para um canto, olhava para outro, mirava o horizonte sem fim bem lá longe. E foi ficando cada vez mais agoniada. Começou a pensar consigo mesma:

−Ah, se eu estivesse sozinha... Logo, logo eu estava lá.
Se pelo menos Xangô, seu parceiro de agonia, resolvesse lhe acompanhar... Mas que nada: Xangô hoje estava decidido fazer companhia ao mais-velho...

 A agonia aumentou tanto, que ela não suportou mais andar no passo do cágado. Aí, ela rodopiou e seguiu em frente sozinha. Lá, bem adiante, parou. Ficou embaixo de uma jaqueira, enquanto observava o grupo que se arrastava lentamente, por causa de Oxalá. A essas alturas, ela já estava pensando no que ia fazer depois que voltasse da viagem. Assim, ela navegou nos pensamentos, fazendo mil projetos. E a ventania corria pelo mato, derrubando folhas verdes e maduras.
 Quando ela estava assim, bem de seu, uma jaca-mole, bem madura, despencou bem em cima de sua cabeça. Ela ficou banhada de visgo e melaço de jaca, da cabeça aos pés. Tomou um susto enorme, deu um grito e ficou sem saber o que fazer. Aí, ela se sentiu profundamente desamparada e resolveu voltar ao encontro do grupo.
Todo mundo notou a melação, mas ninguém disse nada. E ai de quem perguntasse qualquer coisa... De cabeça baixa, ela passou por Oxalá e tomou o último lugar na fila, atrás dele. Iansã apenas ouviu a última frase de uma conversa, que já estava terminando, entre Oxalá e Omolu, os mais velhos entre os mais-velhos:
− Pois é... Como o senhor bem sabe, esse povo assim, agoniado, precisa aprender: Quem só anda às carreiras vai ter que voltar muitas vezes, para vencer a agonia.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Da série Humanoides, de Marcelus Bob

Eros, tanathos e as raízes da modernidade

Por Homero Luiz Santos e Maria Fernanda Santos

Prevaleceu o alhures da última caminhada… O papo entre ambos, pai e filha, prosseguiu portanto num cenário campestre. Desde o passeio à beira-mar, não tinham mais se falado, mas de certo modo a conversa havia continuado em segundo plano. Fragmentos daquelas idéias sobre a civilização e seus deuses se faziam presentes no cotidiano de cada um deles, gerando reflexões e indagações.

O cheiro de maresia deu lugar à mistura de aroma de terra, de umidade e de ciprestes. Eles caminhavam sob um belo céu de inverno – azul e límpido. Entre um passo e outro, ele divagava: “Estava pensando que poderíamos levar mais deuses àquele panteão, além de Mercado, Ciência e Morte. Veja a tradição védica: temos, dentre os muitos deuses menores ali existentes, a suprema tríade de Brahma, Vishnu e Shiva, chamada de Trimúrti. Observando bem, a trindade Mercado-Ciência-Morte corresponde de forma invertida a essa Trimúrti. Brahma é, no hinduísmo, o Criador da Vida enquanto, na trindade que identificamos antes, o deus Morte elimina vidas ainda que para viabilizar outras vidas ao longo da cadeia alimentar. Vishnu é o Mantenedor da Ordem enquanto o deus Ciência cria a desordem na ordem natural, tentando subjugá-la. E Shiva é o Transformador do Mundo, correspondendo ao inverso do deus Mercado, anestesiador da vontade de mudança, já que oferece a saciedade acomodatícia”.

Ela reconheceu a ressonância dessa proposição com outra, que reúne vida e morte numa dualidade oposta e complementar. Pensou em Freud e sua pesquisa acerca daquilo que impulsiona nossas ações. E emendou: “O psicanalista dirá que o que nos move são as pulsões, duas pulsões básicas das quais se originam as demais – pulsão de vida (Eros) e de Morte (Tanathos). Ao lado da pulsão de vida – que busca o prazer e evita o desprazer – há a pulsão de morte, que busca a aniquilação e é um não-querer, uma espécie de movimento niilista que conduz ao inorgânico, ao inerte. Eros e Tanathos seriam opostos e complementares como Brahma e Morte.”

E prosseguindo nas considerações: “O interessante é que um dos caminhos que Freud percorreu para formular a ideia de pulsão de morte foi observar a brincadeira de uma criança pequena. Toda vez que a mãe da criança se ausentava, a criança enrolava um carretel e o arremessava para longe de seu berço para depois recuperá-lo pela linha presa aos dedos, sempre pronunciando nesse vai-e-vem as palavras Fort-Da (Fort – longe; Da – perto). Freud interpretou essa brincadeira como um jogo representacional em que a criança se apoderava do próprio processo de perda da mãe. Perdia-a e a recuperava simbolicamente, repetindo uma experiência desagradável, mas dessa vez com controle sobre ela. Enquanto a repetia, a controlava e elaborava: ao sofrimento pela perda contido no Fort (Cadê?) sobrevinha a alegria do reencontro do Da (Achou!).”

Já estavam quase no fim da trilha que serpenteava entre relvas e ondulações do terreno quando ela, depois de alguns passos em silêncio, disse: “Nessa brincadeira encontramos de maneira emblemática os deuses da trindade: vida e morte impulsionando nossas ações, criando uma ordem humana e subjugando a natural, através da Ciência. Ambos vigorando através dos mecanismos de saciedade que o Mercado oferece. Tal como a criança pequena, nessa brincadeira nós desenhamos maneiras de jogar e recolher o carretel, buscando controlar a inexorabilidade de nosso destino.”

A essa altura, o sol ardido do inverno recomendava uma pausa sob a copa de uma árvore qualquer e um sorvo providencial de água. Pairava uma atmosfera de reflexão entre os dois e parecia que a parada no trajeto tinha posto um ponto final ao papo. Foi quando ele, parecendo que fisgara algo no vórtice de idéias que se agitavam em seu pensamento, reiniciou o diálogo como que buscando uma conclusão, um fecho: “Eros e Tanathos ou, na nossa elucubração, Brahma e Morte, delimitam os extremos de nosso universo ético, estabelecendo um intervalo pendular de condutas possíveis. Explico melhor. Primeiramente, aquilo que parece distinto e oposto na verdade são faces da mesma moeda. Para preservar a vida do indivíduo amiúde contribuímos para a morte da espécie, da nossa espécie e das demais espécies que sustentam toda a vida, aí incluída a nossa própria. Vivemos do sacrifício de indivíduos de outras espécies para obter o alimento necessário à nutrição de nossa espécie. Todas as espécies fazem o mesmo, com a diferença de que recebemos do deus Ciência, em resposta à nossa devoção, as ferramentas para ampliar nossa ação no mundo, criando extensões de nós mesmos com as quais multiplicamos infinitas vezes nosso impacto, desproporcionalmente à nossa massa corpórea. Em nome do conforto e do progresso, matamos mais, muito mais do que aquilo que seria necessário para…apenas sustentar a nossa vida humana.”

“E é o deus Mercado quem nos disponibiliza esses aparatos, é lá no seu altar que em troca de nossas oferendas monetárias logramos encontrar toda a sorte de meios, que tanto salvam e prolongam vidas como decretam o fim destas, em holocausto ao deus Morte cuja outra face, aliás, é Brahma. Ufa! Vida e Morte, Eros e Tanathos, posições extremas do mesmo pêndulo. Aí se situa o fosso profundo onde está encravada nossa civilização!” Na verdade, esse não foi um fecho, foi a abertura de uma nova rodada de conjecturas.

A essa altura algumas nuvens já começavam a aninhar-se sobre as cabeças deles. Sob a sombra que se criava, começaram a caminhada de retorno. Um tanto atordoados, diga-se de passagem…


Davi, de Michelangelo, jardim do Instituto Brennand, Recife

O veneno nosso de cada dia

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Desde 2008 o Brasil lidera a lista dos maiores consumidores de agrotóxico do mundo. O país é o segundo maior produtor de transgênicos do planeta, cuja promessa é o menor uso de herbicidas. Essas e outras contradições são discutidas por Jean Remy Guimarães em sua coluna de setembro.
Uma das imagens de abertura do documentário ‘O veneno está na mesa’, de Silvio Tendler. No filme, o cineasta apresenta a seguinte cifra: “Cada brasileiro consome em média 5,2 litros de agrotóxicos por ano”. (imagem: reprodução)
Tomo emprestado o título desta coluna do notável documentário de Marie-Monique Robin, como poderia também chamá-la O veneno está na mesa, em homenagem ao igualmente notável documentário de Silvio Tendler. Como o leitor já concluiu, são filmes sobre agrotóxicos no Brasil.
Tomei conhecimento desses documentários via redes sociais e discretas notas na imprensa. Vendo-os, descobri estarrecido que somos, desde 2008, o país que mais consome agrotóxicos no mundo. Uau, pensei! Então devemos mesmo ser os campeões na produção de alimentos.
Em rápida consulta ao site da FAO, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, descobri: em 2008, a produção sul-americana de grãos foi de 136 milhões de toneladas. De fato, dá para fazer muita papinha. Mas a norte-americana, no mesmo período, foi de 453 milhões de toneladas; a europeia, 478 milhões; e a asiática, 945 milhões.
Não lhes parece desproporcional estar no pódio do consumo de agrotóxicos para uma fatia relativamente pequena da produção global?

Não lhes parece desproporcional estar no pódio do consumo de agrotóxicos para uma fatia relativamente pequena da produção global? É estranho. Também achei notável que um fato tão relevante como esse – de passar ao topo da lista – tenha tido tão pouco destaque na imprensa.
E mais extraordinário ainda a solitária nota na coluna ‘Eco Verde’, do jornal O Globo, em 11 de agosto de 2011, sobre a reunião da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) em que se decidiria a respeito da liberação ou não do uso comercial no país do primeiro feijão geneticamente modificado do mundo, desenvolvido pela Embrapa.
Pois bem, depois de algumas divergências na CTNBio, o feijão transgênico foi aprovado nessa quinta-feira, 15 de setembro. Veremos como a imprensa vai reagir. Hoje (16/9) o tema foi destaque da seção de ciência do mesmo jornal mencionado.
Patenteando a vida
Não por acaso tem sido algo acidentada a aprovação de versões transgênicas, ou geneticamente modificadas – que soa menos ‘Frankensteinico’ –, de plantas de maior carisma e simbolismo por sua importância crucial na alimentação humana. O trigo na Europa, o milho no México, o arroz na Ásia...
Cada região tem sua versão do pão nosso de cada dia – o feijão-com-arroz, no nosso caso –, impregnado na sua história, religião, lendas e, sempre que possível, em seus pratos. Cada uma dessas plantas tem dezenas ou centenas de apetitosas variedades, obtidas pelo conjunto da humanidade ao longo dos últimos 10 mil anos graças à exaustiva seleção e cruzamento das raquíticas versões selvagens originais.
Até que um dia, as mesmas indústrias químicas que haviam desenvolvido desfolhantes para uso militar se aliaram a empresas de biotecnologia para desenvolver versões geneticamente modificadas de plantas que as tornassem resistentes a herbicidas específicos. Naturalmente, os herbicidas eram fabricados pelas mesmas empresas.
A Monsanto, por exemplo, desenvolveu a soja RR (Roundup Ready), resistente ao glifosato, no mesmo momento em que a patente de seu herbicida Roundup (cujo principal ingrediente é o glifosato) vencia. Com o aumento da demanda pelo herbicida, não deixaria de lucrar tanto quando outras empresas passassem a produzi-lo.
Ninguém estranha que um herbicida seja patenteado. Mas patentear seres vivos? Sim, atualmente isto é legal em muitos países. Tudo começou em 1980, nos Estados Unidos, com uma bactéria, seguida por uma planta em 1985 e um animal em 1990. Hoje as sementes geneticamente modificadas e os herbicidas a que são resistentes são ambos patenteados e vendidos no mesmo pacote.

No Brasil, a lei permite patentes de microrganismos geneticamente modificados e proteção intelectual de cultivares de plantas, mesmo que não sejam geneticamente modificadas. As plantas e os animais – o todo ou partes –, bem como as sequências de DNA de qualquer espécie de ser vivo, não são objeto de patentes.
Lobby musculoso
Rápido retorno ao site da CTNBio. Lá encontro a liberação para o uso comercial de nove variedades de algodão, 17 de milho e cinco de soja, todas geneticamente modificadas para resistir a insetos e herbicidas – e patenteadas. Elas garantem a segunda posição brasileira na lista de maiores produtores de transgênicos do mundo. A promessa dessas plantas com código de barra é garantir maior produção com menor aplicação de agrotóxicos.
Por isso continuo não entendendo por que estamos no pódio mundial do uso desse tipo de produto. E por que o nosso uso de agrotóxicos cresce mais rápido que nossa produção de alimentos, transgênicos ou não.
Bem, na verdade, há umas coisinhas que ajudam bastante, como isenções fiscais – parciais ou totais – sobre agrotóxicos, em âmbito federal e/ou estadual; condicionamento de crédito bancário à comprovação de aquisição do pacote agronômico completo; assédio judicial sobre os órgãos reguladores como a Anvisa por parte tanto das empresas como de órgãos do próprio governo – como os ministérios da Agricultura e da Ciência, Tecnologia e Inovação.

O Brasil usa diversos agrotóxicos importados cujo uso já foi proibido em países como Estados Unidos, China, Comunidade Europeia e diversas nações africanas

Tem mais. O Brasil usa diversos agrotóxicos importados cujo uso já foi proibido em países como Estados Unidos, China, Comunidade Europeia e diversas nações africanas. Nesses lugares, com frequência se proíbe o uso, mas não a fabricação. Alguns simplesmente transferem a fábrica para algum país mais flexível. Afinal, manter um mercado consumidor para esses produtos, em algum outro lugar, lhes dá uma sobrevida, amortizando mais um pouco o investimento inicial até cessar de vez a produção. Nada que um lobby musculoso não resolva.

Não há dúvida de que a invenção do kit agronômico patenteado foi uma grande jogada comercial. Mas o predomínio de poucas variedades patenteadas em grandes monoculturas promove o gradual desaparecimento das variedades que se plantavam antes da introdução do kit.

Isso deixa os agricultores sem plano B caso a produção diminua, por conta do aumento da resistência das plantas invasoras ao herbicida, e os custos aumentem, devido à necessidade de aplicação mais frequente do produto. Detalhe perverso: os contratos preveem a proibição de reservar parte da safra para replantio, uma prática milenar. Pensaram em tudo.
E ainda chamam isso de nova revolução verde? De fato, certas cédulas têm essa cor.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) produziu em 2009 uma cartilha para informar o consumidor sobre os benefícios da produção de alimentos sem agrotóxicos. O livreto Produtos Orgânicos – O Olho do Consumidor, ilustrado pelo cartunista Ziraldo, teve tiragem de 620 mil exemplares e está disponível na página do Mapa na internet dedicada à produção orgânica.

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
Fomos informados de que a Monsanto não moveu ação contra o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) pela publicação da cartilha Produtos Orgânicos – O Olho do Consumidor, com trechos sobre os transgênicos. Além disso, o livreto está disponível na página do Mapa na internet dedicada aos produtos orgânicos. Com base nessas informações, reescrevemos o boxe da coluna que fala da cartilha. (19/9/2011)


Crer o que significa

Por: Luiz Fernando Dias Duarte

Um dos tópicos mais favoráveis à emergência de desentendimentos entre cientistas sociais e colegas de outras áreas é o da religião ou crença. Embora haja muitos cientistas que não se considerem ateus ou agnósticos, a imensa maioria tende a considerar o empreendimento científico em si diametralmente oposto a qualquer coisa que cheire a místico ou religioso, inquietando-se enormemente com ameaças de intrusão da superstição na seara da razão.
Quase todos ignoram que possa existir algum tipo de análise ou interpretação dos fenômenos religiosos – e que a antropologia dedique-se intensamente a essa tarefa. Na medida em que nos dispomos a conhecer o sentido da vida humana, nada nos interpela mais que o conhecimento das ubíquas, permanentes e intensas experiências e crenças religiosas.
Um dos primeiros pontos a esclarecer é o próprio foco do problema. Embora se considere em nossa cultura que exista uma área da vida social que se pode reconhecer facilmente como “religiosa” (templos, divindades, espíritos, rituais, crenças, orações, devoção etc.), essa não é a realidade na maior parte das culturas. E, na verdade, não é sequer inteiramente na nossa.

Considera-se como “religiosa” a dimensão de cada sistema simbólico que se ocupa das ordens mais abrangentes de significado

Do ponto de vista mais abstrato possível, considera-se como “religiosa” a dimensão de cada sistema simbólico que se ocupa das ordens mais abrangentes de significado, sejam elas cósmicas, morais ou cognitivas. Assim, na cultura chinesa clássica, o confucionismo desempenhava, a nossos olhos, um papel religioso – embora nem sequer exista uma palavra chinesa que traduza sem esforço as categorias herdadas do latim religio.

Ocorreu-me tratar de tão espinhosa questão ao ler a tese recente de Flávio Gordon intitulada ‘A cidade dos Brights: religião, política e ciência no movimento neoateísta’, defendida no Museu Nacional.

O autor se debruça sobre a recente construção de um ateísmo militante, portado sobretudo por cientistas naturais, que inclui o movimento chamado “bright”. O termo foi escolhido para valorizar a atitude ateísta, ao modo como a adoção do termo positivo “gay” teria sido eficiente para o movimento de afirmação homossexual.

Gordon endossa um juízo presente na literatura que considera o movimento uma “espécie de fenômeno religioso”; chegando-se mesmo a falar de “ateísmo militante”, “ateísmo fundamentalista” ou “ateísmo evangélico”.

Mais especificamente, o autor qualifica essa forma exacerbada do secularismo moderno, do materialismo iluminista, como uma retomada da tradição da Gnose dos primeiros séculos cristãos, uma heresia associada à revolta contra a Criação, ao desprezo pelo mundo tal como se apresenta e à busca de uma superação pelo conhecimento.
Ideologia cristã

O paradoxo de um ateísmo religioso é uma boa introdução à série de paradoxos que cerca o trato científico de tais questões em nossa cultura. A ideia de religião que atravessa o senso comum ocidental é uma reverberação do cristianismo, a ideologia religiosa central de nossa tradição.

Trata-se de uma “religião de salvação” e – como tal – lida com uma peculiar combinação entre este mundo e um além (objetivo da salvação, justamente). Uma sólida literatura associa alguns de seus princípios cosmológicos centrais ao cerne mesmo da cultura ocidental.

O principal é o de sua ênfase na salvação de uma alma pessoal, estritamente individualizada, em função da combinação entre pecado original e livre-arbítrio. Essa ênfase individualista implica uma adesão consciente à experiência religiosa (uma conversão) e não um simples pertencimento a uma comunidade.

Também é fundamental o fato de que ela aspira a uma transcendência sempre fortemente atrelada à imanência: toda a vida do Cristo é uma costura fascinante entre espírito e matéria, carregada de duradouras implicações simbólicas.

Esse naturalismo sempre distinguiu fortemente a cultura cristã das demais religiões de salvação. E acabou marcando o destino da noção de verdade intrínseca a uma promessa de salvação: da verdade revelada, transcendente, passou-se à busca de uma verdade pela razão na própria carne do mundo.

Individualismo e naturalismo continuam sendo duas premissas de nossa visão de mundo – como alicerce do secularismo moderno e fundamento de nossas construções da política e da ciência.

Cruzada antirreligiosa

A noção de verdade científica é, num certo sentido, diametralmente oposta à de uma verdade revelada; mas o modo social pelo qual é desejada, buscada, construída em práticas intelectuais precisas, está impregnado das matrizes de nossa cultura cristã, de uma tradição cultural profundamente internalizada.

Richard Dawkins, o cientista britânico que tem sido o mais vocal dos defensores do movimento neoateísta, está atento às críticas que se dirigem a sua cruzada antirreligiosa e tem mesmo um artigo dedicado a sua refutação.

Pode-se perceber que sua ira se dirige a uma forma de religiosidade característica do cristianismo (e de algumas outras poucas religiões de salvação, como o islamismo) e se nutre claramente do sentimento de uma competição com as estruturas e cânones eclesiais em que se institucionalizaram as numerosas variedades da cultura cristã.

Isso está muito distante do entendimento de que as religiosidades são formas simbólicas estruturantes da possibilidade do estar no mundo, de dispor de um sentido do mundo – a priori (como sublinhava o sociólogo francês Marcel Mauss).

Compreender que a experiência religiosa é a forma básica da existência simbólica do ser humano não quer dizer que se devam aceitar as posições das atuais igrejas estabelecidas contra as formas laicas, libertárias, que assumiram os valores cristãos na contemporaneidade; mas sim compreender sua complexa constituição e necessidade social – até mesmo para melhor propiciar a abertura aos novos formatos prezados pelas vanguardas ocidentais.

É no sentido de que a modernidade exige a defesa de valores cosmológicos estruturados e estruturantes que se pode dizer que carregue também uma ordem “religiosa”. É um modo diferente, é certo; mas todas as religiosidades diferem profundamente entre si, mesmo aquelas que não o são de modo paradoxal.

Premissas simbólicas

Crença é uma categoria carregada de conotações culturais específicas. Vem de uma raiz latina associada ao crédito, ou seja, àquilo em que se pode confiar, e se desenvolveu como uma dimensão fundamental da moral cristã – sinônimo da fé – enquanto sinal da disposição em não ceder à dúvida, em aceitar a revelação.

É assim uma noção básica de nossa cosmovisão, subjacente às formas da verdade moderna. Nós, os que cremos na ciência, acreditamos que se trata de uma forma mais adequada de chegar à verdade (paradoxalmente definida como uma dúvida sistemática); outros creem que o livro da gênese contém a narrativa verdadeira sobre a origem da humanidade.

Isso é verdadeiro em um determinado nível da circulação de tais crenças; mas não para todos. Para a grande maioria das culturas humanas (e mesmo para a grande maioria da população das sociedades contemporâneas), tais questões não se impõem como crenças, mas como premissas simbólicas a priori. Como já definia o antropólogo francês Jean Pouillon, “é o descrente que crê que o crente crê”.

Não há uma definição de religião que não abarque uma infinidade de formas e vivências constituintes da condição humana

Vê-se, assim, que não há uma experiência uniforme do religioso; não há mesmo uma definição de religião que não abarque uma infinidade de formas e vivências constituintes da condição humana.

Tratar de tão graves questões nesta curta nota, para um público amplo, incorre sérios riscos de mal-entendido, abrindo-se o alvo para a ira tanto dos religiosos quanto dos cientistas naturais – e até mesmo de muitos antropólogos (que sempre se digladiam sobre as questões aqui ventiladas).

Há, porém, um alto interesse e urgência em advertir para a legitimidade da reflexão e busca de compreensão dos fenômenos religiosos, quer se os defina de modo estrito ou lato, restringindo-os às formas institucionalizadas da crença e do sentimento de reverência ou compreendendo-os de forma abrangente, como construção simbólica do mundo.

Afinal, a busca dos sentidos do mundo que defendo aqui como foco da crítica antropológica foi o objeto sistemático das ideologias religiosas durante a quase totalidade da experiência cultural humana – e continua a sê-lo para a maioria das gentes. Eis uma comunhão de foco; eis uma diferença – crucial – de método.

Sugestões para leitura:

Brown, Peter. Corpo e sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio: Zahar, 1990.

Dawkins, Richard. Deus: um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Dumont, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

Foucault, Michel. História da sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 2009 [1984].

Pouillon, Jean. Remarques sur le verbe croire.
In Michel Izard e Pierre Smith (orgs.), La fonction symbolique. Paris: Gallimard, 1979.


Ética igual, pesquisas diferentes

Por: Luiz Fernando Dias Duarte, antropólogo do Museu Nacional

No Brasil, as mesmas regras para a condução de estudos biomédicos valem para as pesquisas nas ciências humanas. Na sua coluna de setembro, o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte destaca a impertinência da situação e como ela atrapalha as pesquisas em sua área.

Concebida para lidar com as situações de pesquisas biomédicas, a resolução 196 acabou por regular todos os estudos envolvendo seres humanos, mesmo aquelas cujas características nada têm de tecnológicas ou interventivas. (montagem: Sofia Moutinho)

Em 10 de outubro de 1996 foi homologada pelo Ministério da Saúde uma resolução aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde dedicada à regulamentação de pesquisas “envolvendo seres humanos”.

Em seu preâmbulo, esclarece-se que o documento “incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro referenciais básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado”.

Tratava-se de um enorme avanço na organização de um sistema de proteção aos sujeitos e populações expostos à pesquisa biomédica, ou seja, à intervenção da medicina sobre os corpos de seres humanos com vistas à produção de conhecimento científico.

O século 20 tinha assistido estarrecido ao comprometimento de uma boa parte da comunidade médica alemã com as propostas de 'higiene racial' do governo nazista e – sobretudo – com a realização de pesquisas de cunho altamente interventivo em vítimas daquele regime.

Deve-se lembrar que experiências tão questionáveis quanto foram conduzidas nas próprias democracias ocidentais, frequentemente fundadas na mesma doutrina médica da ‘degeneração’ que sustentara o racismo nazista. Vide o famoso caso do estudo de sífilis em Tuskegee, no Alabama, desencadeado em 1930 pelo Serviço Nacional de Saúde estadunidense, e as recém-divulgadas pesquisas realizadas na Guatemala nos anos 1940, também por cientistas dos Estados Unidos, para testar medicamentos contra doenças sexualmente transmissíveis. Na Guatemala, os pesquisadores teriam chegado a deliberadamente infectar pessoas com sífilis e gonorreia.

Voltemos à resolução nº 196, de 1996. Esta incorpora uma série de propostas e recomendações contidas em acordos e códigos internacionais, concebidos no âmbito de instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Conselho para Organizações Internacionais de Ciências Médicas (Cioms, na sigla em inglês) a partir do Código de Nuremberg, de 1947.

Concebida precipuamente para lidar com as situações de pesquisa na área médica (e suas tecnologias), a resolução acabou se propondo a regular todas as pesquisas envolvendo ‘seres humanos’, mesmo aquelas cujas características nada têm de tecnológicas ou interventivas, como as da sociologia, da psicologia (não experimental) e da antropologia. Uma rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), subordinados a uma Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) vinculada ao Ministério da Saúde, foi criada em todo o país, com atribuições universais de controle e fiscalização dos projetos de pesquisa.

‘Em’ seres humanos x ‘com’ seres humanos

Essa situação vem gerando um constante e desnecessário desgaste dos pesquisadores em ciências humanas, que devem apresentar protocolos de pesquisa construídos dentro dos parâmetros vigentes nas ciências médicas e biológicas e submeter seus projetos a comitês ignorantes do sentido e da lógica dessa outra área da vida científica moderna.

Mas esse não é o único problema advindo da regulamentação do Ministério da Saúde. Foi adotado obrigatoriamente para todos os tipos de pesquisa o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, essencial para as situações de cobaias humanas, mas completamente despropositado – pelo menos na forma em que é definido na resolução – para pesquisas não experimentais ou interventivas.

Para a antropologia, que se desenvolve na maior parte das vezes com sujeitos em situações dominadas, minoritárias, carentes ou marginais, esse mecanismo – se aplicado ao pé da letra – inviabilizaria a condução de numerosas pesquisas.

Se já é difícil entrevistar policial corrupto, trabalhador clandestino e usuário de drogas, imagina fazê-lo com a exigência da assinatura de um documento público

Se já é difícil entrevistar um policial corrupto, um trabalhador clandestino ou um usuário de drogas, imagina fazê-lo com a exigência da assinatura de um documento público! Sem falar nas complexas situações prevalecentes nas comunidades indígenas ou populações rurais analfabetas.

Um importante antropólogo brasileiro, desafiado por essa situação esdrúxula, cunhou uma agora corrente distinção entre pesquisas ‘com’ seres humanos e pesquisas ‘em’ seres humanos. Apenas estas últimas interferem diretamente na saúde e nas condições de vida das pessoas ou populações afetadas, devendo ser objeto de uma regulamentação específica.

Inadequada e insuficiente

Os pesquisadores das ciências humanas não ignoram nem subestimam a necessidade geral de um controle ético da ciência, e particularmente em sua própria seara. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) tem em vigor, nesse sentido, desde 1988, um Código de Ética relativo à ação de seus filiados.

Eles compreendem a absoluta necessidade de uma rigorosa regulamentação da pesquisa ‘em’ seres humanos, mas não consideram nem adequadas nem suficientes os preceitos da resolução 196 para seu próprio trabalho ‘com’ pessoas.

Luis Roberto Cardoso de Oliveira, em recente mesa-redonda sobre ética na Reunião de Antropologia do Mercosul, sublinhava o quanto pode ser enganosa a garantia oferecida pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, por não levar em conta a profundidade do comprometimento do pesquisador com o seu contexto de pesquisa nem a complexidade das situações de autonomia e responsabilidade dos agentes sociais envolvidos em tais processos.

A Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva lograram aprovar na Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de julho de 2010 uma moção para a discussão e revisão das normas brasileiras emanadas do Ministério da Saúde.

Alerta-se para o fato de que se encontram em tramitação no Congresso Nacional dois projetos de lei que pretendem transformar a atual resolução em um texto legal ainda mais vinculante – com graves riscos para a existência da pesquisa em ciências humanas.

Em outubro de 2005, a Conferência Geral da Unesco adotou por aclamação a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, que visa regular “as questões de ética suscitadas pela medicina, pelas ciências da vida e pelas tecnologias que lhes estão associadas, aplicadas aos seres humanos, tendo em conta as suas dimensões social, jurídica e ambiental”.
Essa foi uma fórmula muito mais consequente e adequada do que a adotada pelo governo brasileiro, ao restringir seu escopo à área particularmente delicada da biomedicina.

A ética é uma consideração das condições em que a atividade humana interfere na vida de outrem, em nível pessoal ou coletivo. Também entre as próprias ciências é necessário que essa consideração prevaleça, garantindo a todas o pleno exercício de sua atividade.

Sugestões para leitura

Fleischer, Soraya; Schuch, Patrice (orgs.). Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília: LetrasLivres e Editora Universidade de Brasília, 2010.
Fleischer, Soraya R.; Fonseca, Claudia; Schuch, Patrice (orgs.). Antropólogos em ação: experimentos de pesquisa em Direitos Humanos. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007.

Guerriero, Iara Coelho; Schmidt, Maria Luisa S.; Zicker, Fabio (orgs.). Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008.
Victora, Ceres et al. (orgs.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: EDUFF/ABA, 2004.